A bíblia medieval contemporânea de Piqueira
Entrevistamos o autor do livro que fez de Jesus um creme anti-celulite.
Ah… aquele pacote, aquele pacote deu o que falar!
Estava trabalhando. Trabalhando daquela jeitão mainstream — no escritório, horário comercial, carrancudo de frente ao Outlook — e me assustei quando o Zé entrou na sala falando “Adolfo, chegou essa encomenda aqui pra você”.
Claro que tal evento tirou a concentração dos meus colegas de equipe, e então, alguém falou “nossa, que pacote bonito”. Quando desempacotei, escutei “nossa, que caixa bonita, isso é um livro” e quando abri a caixa e nela encontrei um livro enorme, de capa metálica, dourada e cravejada de pedras falsas, alguém falou: “deve ser um livro religioso”.
Ali começava a minha experiência com “Mateus, Marcos, Lucas e João”, o livro que estava dentro do pacote. Dentro dessa capa dourada, páginas foram diagramadas com iluminuras contemporâneas. Na hora descobri que estava prestes a absorver mais do que a palavra escrita, mas também uma experiência visual incrível.
Isso foi em dezembro. Devido a exuberância da obra, não pude carregar ou ler o livro em metrôs e ônibus — como costumo fazer –, por isso tive que esperar o recesso. As festas de final de ano. O aniversário do menino Jesus que, por ironia do destino, é representado em “Mateus, Marcos, Lucas e João” por um creme anto-celulite. É… isso mesmo.
Vou tentar falar um pouco da ideia de seu autor, Gustavo Piqueira, sem dar spoilers (ou, pelo menos, muitos spoilers).
“Mateus, Marcos, Lucas e João” é uma “bíblia contemporânea”. Em dias que um verdadeiro messias pode sim ser algo que promove milagres estéticos — no caso, um creme anti-celulite. Em vez de apóstolos, temos promotores de venda. Doze promotores de venda. Destes, quatro escrevem seus relatos, seus storytellings que são narrados de uma forma engraçadíssima, cheio de paralelos com o novo testamento (e aqui eu começo a me contorcer pra não escrever spoilers). Paralelos, como, por exemplo, a passagem da crucificação de Cristo e a ressurreição de Lázaro de Betânia, que são simplesmente impagáveis ao serem narrados no contexto criado por Piqueira.
Após ler o livro, no fundo da caixa ainda tem um segundo livro, pequenino, com o título “O autor Gustavo Piqueira rebate as acusações de plágio recebidas por seu livro Mateus, Marcos, Lucas e João”, onde ele debate paralelos históricos e gráficos com relação ao seu livro e a bíblia. Uma verdadeira aula de história, tanto no contexto religioso, como no contexto gráfico.
Como cereja do bolo, fica em cartaz na Sala BNDES da Biblioteca Guita e José Mindlin, a exposição “INANIS, iluminuras para o século XXI”, onde Gustavo Piqueira expõe o seu trabalho gráfico (três conjuntos de obras completos, que vão de “A” a “Z”) para fazer as iluminuras de “Mateus, Marcos, Lucas e João”.
Abaixo, segue a entrevista que fiz com o autor dessa belezura toda.
Não Só o Gato: Primeiramente, gostaria de parabenizá-lo pela obra e falar que “Mateus, Marcos, Lucas e João” me rendeu muitas gargalhadas durante esse período de final de ano. Logo após ler o(s) livro(s), janeiro chegou e com ele a tristíssima notícia do atentado ao Charlie Hebdo — quando essa relação entre o humor e a religião foi amplamente discutida.
Você, que conheceu profundamente um dos maiores ícones religiosos ocidentais — a Bíblia — e, de certa forma, fez uma “brincadeira” muito consciente com esse ícone, como vê todo esse momento de discussão? Te proporcionou uma nova reflexão em relação a sua própria obra?
Gustavo Piqueira: É claro que utilizar a Bíblia como “suporte” para a construção do meu livro pode ter lá seu grau de “desrespeito” para alguns. Mas acredito que, apesar de brincar com a estrutura da Bíblia — tanto no aspecto formal quanto no narrativo —, meu “Mateus, Marcos, Lucas e João” passa bem longe de uma sátira ao cristianismo. Pelo contrário, seu alvo é o mundo de hoje. Rir de religiões — ou de qualquer outro tipo de crença, religiosa ou não, que difira das minhas — nunca foi algo que me atraiu muito, não. Para mim, ter usado a Bíblia como mote gráfico/narrativo neste último livro seguiu o mesmo princípio de outros que já fiz, como Odisseia de Homero (segundo João Vítor), no qual um menino meio picareta tenta “interpretar” a Odisseia original. É isso o que me diverte: poder brincar com essas obras canônicas, intocáveis — mas muito mais com sua forma/estrutura/personagens do que com sua mensagem.
Por isso, o atentado de Paris não causou nenhuma “revisão” em minha própria obra, não. Mas, claro, considero-o lamentável e injustificável — assim como considero todos os atos similares, ocorram estes na Republique ou na Nigéria, vitimem uma ou mil pessoas.
NSG: A parte visual do seu livro é incrível. Mais incrível ainda é a forma que você fez várias “mídias” offlines conversarem, coisa muito rara nos dias de hoje — um livro que conversa com outro, que também conversa com uma exposição.
Por outro lado, tudo isso ganha um peso muito grande com os dados apresentados no segundo livro, que vão muito além do humor. Queria saber quem veio primeiro: a vontade de criar a releitura de uma identidade visual oriunda da idade média ou a sua vontade de expressar essa visão tão pouco divulgada sobre o grande storytelling que é a Bíblia.
Primeiro surgiu a ideia das capitulares. As capitulares medievais sempre foram algo que me encantaram mas que, por não se encaixarem nos parâmetros produtivos de impressão surgidos após a difusão da imprensa no Ocidente, no século XV (ou seja, após Gutenberg), desapareceram. Ficaram como que encapsuladas a um período de tempo específico. Um dia, pensei em “reavivá-las”, ilustrando-as não com passagens bíblicas, mas com imagens cotidianas.
Uma vez prontos os três tamanhos de alfabetos de desenvolvidos, de A a Z, pensei: bom, o que faço com isso? Deu tanto trabalho que alguma coisa precisava ser feita… Daí concluí que capitulares iluminadas servem para ilustrar Evangelhos. Veio, então, a ideia de criar uma versão dos quatro evangelhos — Mateus, Marcos, Lucas e João — adaptadas ao messias que as pessoas tanto esperam hoje em dia: um cosmético salvador.
Por último, para que o projeto efetivamente fizesse as referências necessárias tanto à estrutura narrativa quanto à parte visual dos Evangelhos bíblicos, acabei me aprofundando tanto no processo de evolução/canonização do Novo Testamento que achei que seria legal criar um volume extra que contasse — ainda que por alto — essa história. E essa mistura — um tanto esquizofrênica — se tornou o livro.
NSG: Andei pesquisando o portfólio da Casa Rex e vi que o designer Gustavo também já tocou muitas identidades visuais e embalagens de grandes marcas. Existe algum conflito entre esse Gustavo com o que acaba de lançar o seu 15º livro?
Piqueira: Não, sem conflitos. Basta organizar bem o tempo e “todos os Gustavos” convivem harmoniosamente. Parafraseando o inglês William Morris (mas longe de me comparar a ele), quando perguntado sobre suas múltiplas atividades: na verdade, tudo o que eu faço é uma coisa só. O que ocorre é que gosto de expressá-la por vários meios diferentes.
NSG: Entre São Paulo e Londres você sente muita diferença no mercado editorial (em termos de frescor)? Entre uma Livraria Cultura e uma Foyles, onde você acha que “Mateus, Marcos, Lucas e João” criará mais espanto?
Piqueira: Eu não sei dizer. Como também não sei se “espanto” é o que melhor define a reação das pessoas. Acho que, como afirmei acima, a mistura de ficção, história, design, artes visuais, processos artesanais de produção e etc… torna o livro um tanto “estranho” para algumas pessoas. Algumas acham que é um livro só “pra ver” — como é praxe em livros-objeto. Outras terminam por se perder nos “três livros em um”. Eu já havia sentido essas dúvidas de algumas pessoas (“onde encaixo isto?”) em alguns de meus projetos anteriores, onde costumo misturar texto e design de um modo pouco ortodoxo, mas talvez nunca de um jeito tão evidente quanto em “Mateus, Marcos, Lucas e João”. De qualquer modo, não acho uma coisa negativa: planejo continuar misturando todos esses elementos da forma mais livre possível.
Imagens de divulgação
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