Tribos: exclusão social ou inclusão perversa?
Dias atrás ouvi dizer que está em cartaz uma peça que discute a temática da surdez, no teatro TUCA, em São Paulo. Meu primeiro estranhamento foi saber que o projeto da peça é do filho de Antonio Fagundes, que compõe o elenco com o pai e outros 4 atores. Achei curioso porque, infelizmente, a maioria das peças de teatro que abordam temas relacionados à inclusão social, pessoas com deficiência e outras questões que “mexem” e – de certa forma – “provocam” a sociedade, costumam ser estreladas por atores menos conhecidos, por companhias menores ou por grupos destas próprias pessoas, chamadas freqüentemente de “minorias”.
Minha curiosidade foi aguçada quando ouvi, um tanto quanto “sem querer”, um pedaço de um depoimento de Antonio Fagundes em entrevista à Fátima Bernardes, no qual tive a impressão de que ele usava os termos: “Surdo” (com S maiúsculo), “deficiente auditivo” e “comunidade Surda” como sinônimos. Como ouvi apenas um pequeno fragmento desta entrevista, me esforcei para controlar a própria reatividade, com medo de julgar injusta e negativamente a peça antes mesmo de assisti-la e sem ter visto o contexto em que o “ator-sessentão-com-pose-de-galã” utilizou aqueles termos. Mas confesso que a primeira sensação que me surgiu foi um profundo desânimo, imaginando que o tema seria usado novamente na mídia de forma “apelativa”, sem um cuidado especial em estudar a fundo a questão; ocasionando, em última análise, interpretações que reforçam estigmas e idéias de cunho assistencialista e de desvalidação no público. É aí que, travestida em uma fantasia bonita, a exclusão social é reafirmada na sociedade, transformando-se em uma “inclusão perversa”[1].
O tema da surdez me interessa desde pequena, quando entrei em contato com algumas crianças surdas que estudavam em uma escola especial no mesmo bairro que a minha. Eu achava fantástico ver todas elas conversarem com as mãos! Aqueles gestos encantavam profundamente, me fazendo imaginar quão divertido seria falar usando o corpo todo, mexendo mãos, braços, corpo e fazendo várias expressões faciais a cada gesto. Em uma mistura de ignorância no assunto e criatividade infantil, eu pensava que falar em língua de sinais era como viver o tempo todo jogando “Imagem e Ação”. Alguns anos mais tarde, descobri que não era bem assim. Então, quis aprender a falar com as mãos também e comecei a estudar LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). A partir deste momento, descobri muitas coisas sobre surdez e me dei conta de como a fala oral acabava por ofuscar o brilho e a percepção de todas as outras linguagens. Quando a voz cala, passamos a perceber que o corpo todo é uma como uma máquina de produzir linguagens, que o silêncio pode gritar, que o olhar do outro comunica profundamente.
Talvez pareça clichê o que digo, mas experimente conhecer as Línguas de Sinais[2] que você vai sentir a intensidade!
Aproveitei o feriado de sábado e fui com meu namorado assistir à “Tribos”, nome da “tal” peça. Para a minha alegre surpresa, eu estava completamente enganada! Com o TUCA 100% cheio, o que vi foram atores que nitidamente não estavam “encenando” os sinais (estava explícito que haviam realmente aprendido a Língua para atuar na peça), cenas sensíveis e com discussões coerentes com a realidade dos Surdos, problematizando questões vivenciadas por muitas dessas pessoas. Mas a melhor surpresa ainda estava por vir! Enquanto assistia à peça, apesar de estar encantada com a forma com a qual a temática era abordada, algumas questões começaram a me inquietar: “Como uma peça sobre isso não tem um intérprete de LIBRAS para os momentos de longos diálogos orais?”, “Será que as pessoas que não têm muito contato com Surdos estão entendendo algumas “piadas”, como quando um personagem diferencia ´pessoa com deficiência auditiva´ e ´Surdez-com-S-maiúsculo´??”, “Para produzir a peça, eles tiveram discussão e orientação de Surdos ‘ reais’?”.
Quando estas dúvidas começaram a atrapalhar meu encantamento com a peça, ela terminou. Antonio Fagundes anunciou que os atores ficariam no palco para um bate-papo com a platéia, para aqueles que tivessem ficado com algumas dúvidas ou curiosidades. E NENHUMA das minhas inquietações ficou sem resposta! O Fagundes “pai” informou sobre as datas das apresentações que teriam intérprete simultâneo de LIBRAS, com legenda e audiodescrição, enfatizando a preocupação do elenco em fazer com que esta peça fosse, de fato, acessível a todos. Já o Fagundes “filho” falou sobre o que o motivou a produzir “Tribos” e como foi a preparação para utilizar Língua de Sinais no palco. Os atores, além de contarem um breve histórico sobre o surgimento da Língua, ainda fizeram uma crítica que me soou bastante responsável e consciente sobre a questão dos patrocínios no Teatro, sobre as dificuldades com as políticas públicas de incentivo às artes e outras discussões bacanas que vou transformar em “reticências” agora, para deixar o espaço da novidade àqueles que quiserem conferir.
Fica a dica! “Tribos”, um texto escrito originalmente pela dramaturga inglesa Nina Raine, dirigido por Ulysses Cruz, que trata da história de um rapaz Surdo nascido em uma família de ouvintes intelectualizados. Em cartaz no teatro TUCA até 15 de Dezembro.
[1] Vale a pena falar um pouquinho mais sobre isso: Na Psicologia Social, Bader Sawaia discute bastante o tema da “inclusão perversa”, apontando para o fato de que todas as pessoas estão inseridas de alguma forma, mas nem sempre de uma maneira decente e digna, o que torna necessário complexificar a discussão entre inclusão/exclusão.
[2] SIM! “AS” LÍNGUAS DE SINAIS! Ao contrário do que muitas pessoas pensam, não existe uma universal; cada país tem a sua! E tem mais: dentro de cada país há regionalismos; alterações de sinais de acordo com a região. O sinal da palavra “caneta” em um estado do Brasil, por exemplo, pode ser confundido com um palavrão em outro estado!
Fotos por: Divulgação/João Caldas e Estela Marcondes
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