E-Jovem, escola LGBT
Ela seria só mais uma das casas residenciais na tranquila Rua José Camargo, em Campinas, se não fosse o cartaz na entrada escrito “Escola Jovem LGBT”. Liderada pela drag Lohren Beauty e por Deco Ribeiro, a escola, inaugurada no dia 13 de março de 2010, é a primeira do gênero no país. Fomos até lá em um sábado de céu azul ensolarado, e assim que descemos do carro ouvimos de dentro da casa muitas risadas, acompanhada da vinheta do Porta dos Fundos. O Deco nos recebeu na varanda, e foi de lá mesmo que desenvolvemos um papo. Durante a nossa longa conversa a risada de lá de dentro não cessava. Eu, como boa fã do Porta, reconheci alguns vídeos que estavam sendo vistos, como por exemplo “Entrevista”, e depois alguns do Terça Insana. No final do dia, depois de passar uma tarde inteira com o Deco e os alunos que estavam lá para o curso de performance drag queen (a Lohren estava ausente, fazendo show na Bahia), saí de lá com os ecos das gargalhadas em minha cabeça, e feliz por terminar o dia depois de ter conhecido um lugar não só curioso, mas principalmente transformador.
O Deco nos explicou a história do Grupo E-Jovem de Adolescentes Gays, Lésbicas e Aliados, ou simplesmente E-Jovem desde lá atrás, em 2001, quando eles ainda eram só um site. “A idéia do site era dar informação para quem estava se descobrindo e queria uma referência. Hoje tem muita divulgação, mas na época, 2001, não tinha. Não tinha novela, não tinha debate, na mídia não tinha nada. O jovem que se descobria gay se achava muito errado, muito equivocado, e não tinha pra quem perguntar coisas básicas. Então montamos um site que pudesse aflorar um pouco esse universo. Aí em 2002 a gente resolveu fazer um filme. Escrevemos roteiro, selecionamos os atores e gravamos.” O vídeo ao que o Deco se refere se chama “Meu cachorro é gay”, e como foi filmado em VHS, ainda não está disponível na internet. Mas ele promete que até o final desse ano estará no Youtube. “O legal do vídeo é que por causa dele a gente se encontrou pessoalmente para fazer alguma coisa. E o filme fala um pouco desse universo dos jovens daquela época. E o interessante – vou abrir um parênteses aqui – é que a gente fez um outro vídeo também do universo gay em 2009, chamado “Sander & Júnior”. Sete anos de diferença para o primeiro vídeo. E é legal colocar esses dois vídeos lado a lado, porque você vê que alguns elementos são os mesmos, como a sensação da família, a escola, só que o de 2002 não aparece a violência, já o de 2009 aparece muito forte essa questão”.
Um levantamento do Ibope realizado no final do ano passado mostra que quase 95 milhões de brasileiros tem acesso à internet, mas quando o projeto do E-Jovem começou não era bem assim. “A internet, naquela época, era acessada por 10% dos brasileiros. Para quem conseguia acessar o site era legal, mas e o povo que está aí fora e não consegue acessar? Como é que faz? Então a gente tinha que sair da internet para a rua para fazer alguma coisa. Lá pra 2003, 2004, a gente montou uma ONG que reuniria a juventude LGBT. E assim a ONG saiu pelo país inteiro, o povo de São Paulo se organizou, do Rio, de Amazonas, do Rio Grande do Sul, e aí vários grupos E-Jovem foram surgindo. A de Campinas virou a sede porque basicamente eu era um dos principais organizadores.”, afirmou Deco.
Campineiro de coração nascido no Rio de Janeiro, ele veio para Campinas para estudar física na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e também estudou jornalismo na Faculdade de Campinas (Facamp). “Antes de ter esse espaço, a gente já teve outros aqui na cidade, todos emprestados. Só que não tinham equipamentos, eu não tinha a chave, não tinha nada.” Só que em 2009 a E-Jovem ganhou uma verba proveniente de um convênio entre o Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura e o Governo do Estado de São Paulo, que permitiu concretizar o sonho do Deco, a criação de um espaço físico. “Quando foi aprovado o nosso projeto, compramos os equipamentos, e aí foi divulgado que iria abrir uma escola gay em Campinas. A coisa pegou fogo”, disse. Ele me explicou que escolheu o nome “escola” propositalmente, para criar polêmica entre as pessoas e a própria mídia, para assim gerar debate. “Foi uma ousadia. Decidimos não chamar aqui de “centro cultural”, escolhemos “escola” porque ela é o espaço onde os jovens sofrem mais preconceito. As pessoas até achavam que aqui ia ser uma escola tradicional, com 1ª, 2ª série, só para gays. Aí pronto. O pessoal dizia: “Como assim? Que absurdo!” Ficaram revoltados, o pessoal da mídia, programas de televisão. A Danuza Leão fez um artigo metendo o pau.” E aqui é importante frisar que a escola não é exclusiva para homossexuais, héteros também são bem-vindos – como qualquer lugar que queira agregar, e não segregar, como mostra o Deco nesse texto em resposta às críticas. “Já tivemos tanto alunos, quanto professores héteros.” Ele disse que no dia da inauguração da escola toda a imprensa de Campinas estava lá, a revista Marie Claire (confira matéria aqui), e depois até o Fantástico foi lá (o vídeo está disponível nessa página). “Foi bem interessante, porque trouxe a visibilidade que eu queria para debater. Vieram me escutar e aí eu tive a chance de explicar, de ser ouvido. Mas foi muito difícil chegar até aqui, e até hoje a gente encara algumas coisas. Já teve gente que tacou pedra aqui, tacou ovo. Um dia acordei de manhã e tive que recolher cacos de garrafa.”
E mesmo com esse desafio diário, a escola segue muito bem, obrigada, depois de mais de três anos de existência. “A escola é um centro cultural, tão legítimo quanto qualquer outro. A gente trabalha com linhas de expressão artística, cênica e gráfica. Dentro dessas linhas todos produzem alguma coisa, seja ela um espetáculo, uma revista, um livro, um CD, um fanzine.”, conta. Eu tive a oportunidade de ler algumas das revistas e fanzines da E-Jovem, e me deliciei com um conteúdo que ao mesmo tempo é divertido e didático. Assuntos como AIDS, suicídio, religião, sexo seguro e até alistamento militar são abordados nas edições. “Aí depois toda essa produção é difundida para fora da escola. A ideia é ter um espaço onde você pode debater o universo LGBT e produzir em cima desse universo, que é tão oprimido fora daqui. E na verdade, o jovem procura esse grupo para se conhecer mais. Aqui dentro há toda uma vivência, e esse espaço é justamente para a convivência, para vir aqui e fazer as coisas.”
Sobre o curso de drag queen, o mais polêmico, mas também o mais esperado pelos estudantes, ele diz: “O curso existe para cada um desenvolver a sua personagem, conhecendo a sua drag queen interior. Depois de construí-la, eles vão montar um espetáculo que será apresentado”. “E o futuro da escola?”, questionamos. “Como a gente sabe que o recurso do governo vai acabar, a gente já plantou algumas sementes. Criamos mini kits com notebook, datashow, máquinas fotográficas e aparelhos de som para mandar para as próximas E-Jovem que irão abrir. A de Piracicaba já está funcionando, e em breve abrirá uma unidade em São Vicente, no litoral, e outra em São Paulo. Aqui vai continuar funcionando, essas abrirão, e a idéia é se espalhar pelo país”, concluiu Deco.
Fotos por Adolfo Martins
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