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O descanso do 7º dia: Um domingo no Minhocão

por Estela Marcondes, 7 de outubro de 2013
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50 mil tons de cinza (des)colorem a paisagem de segunda a sábado no “Minhocão”, como não-tão-carinhosamente-assim é conhecido o “Elevado Presidente Costa e Silva”.  Esta via expressa liga o centro de São Paulo à Perdizes e foi construída no final da década de 60 pelo então prefeito Paulo Maluf com o objetivo de diminuir o trânsito de ruas que, por cortar regiões centrais da cidade, já não poderiam ser alargadas.

Muito criticado desde sua construção, o Elevado recebe os mais diversos adjetivos: “aberração arquitetônica”, “obra de engenharia bruta”, “arquitetura cruel” e tantos outros que evidenciam a pouca simpatia com que os moradores da cidade percebem a obra – inclusive eu, com a minha vasta experiência de seis anos como “vizinha” de frente desta construção.

Situado a apenas 5 metros de distância dos prédios em seu entorno (como é possível notar na imagem abaixo), o Minhocão me parece um símbolo caricatural que sintetiza a expressão do caos metropolitano: cinza, trânsito, barulho, asfalto, poluição, mais um pouco de barulho, acidentes, desigualdade e – só para enfatizar – um pouquinho mais de barulho…

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Mas como bom símbolo, o “Minhocão” também me ensina que até a mais dura e fria das paisagens pode se tornar colorida e perfumada quando as delicadezas dos seres humanos escorrem por elas. Isso acontece aos domingos e feriados, dias em que a grande via é fechada para carros e as máquinas dão lugar a ciclistas, skatistas, pedestres e animas de estimação.

out (37)Colorindo o cinza do asfalto, vejo um menino aprender a andar de bicicleta, apoiado pelo pai que o incentiva com um leve impulso no selim. Um pouco mais à frente algumas crianças disputam uma partida de futebol, enquanto uma senhora que já não consegue sair com freqüência de casa os observa da janela de seu apartamento, com os cabelos brancos delicadamente acariciados pelo mesmo vento que, durante a semana, parece insuportavelmente poluído. Do outro lado, uma pessoa em situação de rua aproveita para descansar seu corpo na mureta quente que divide os dois lados da via expressa. É o único momento em que sente, de fato, que o espaço é tão dele quanto do empresário bem sucedido que caminha a passos rápidos pelo asfalto, garantindo o exercício matinal. Um casal de namorados passeia com o cachorro que abana energicamente o rabo, sem conseguir esconder a alegria em movimentar-se para além dos 30 m² do apartamento. O vendedor de água de côco, com seu guarda-sol colorido refletindo a luz do dia, compõe com o carrinho em forma de pato do vendedor de sorvetes uma paisagem que poderia ser confundida com uma praia urbana, não fossem os outros 6 dias da semana e os limites da imaginação!

Olhares de pessoas desconhecidas se cruzam nos ires e vires de um domingo no Minhocão. Alguns destes olhares se convertem em sorrisos ou num aceno de bom dia. Outros, ainda, desviam-se, mais tímidos ou desconfiados, um tanto contaminados pela contradição de viver tão solitariamente em meio à multidão no cotidiano da vida urbana.

Fico me perguntando quantas histórias, quantas culturas, quantas vidas compõem esta cena? Talvez, alguns destes personagens também passam por ali durante a semana, disfarçados por dentro das “máquinas de rodas” e por uma máscara mais cansada, talvez até mais mal humorada… Mas no domingo não há máquinas intermediando a interação entre os seres humanos, não há classe social evidenciando quem tem o carro do ano e quem não tem, não há o barulho ensurdecedor das buzinas que abafam o som de uma gargalhada ou de um pedido de ajuda… E tudo isso faz com que a “arquitetura cruel” até se pareça um “tobogã”: um pouco desengonçado, feito, quem sabe, por algum engenheiro que decidiu construir um escorrega gigante pelo centro da cidade…

out (16)Fotos por Estela Marcondes

 

Estela Marcondes

Estela Marcondes é Terapeuta Ocupacional, acompanhante terapêutica e encantada pelas "linguagens" do mundo, além da verbal. Algumas vezes pensa que a palavra foi inventada por alguém que estava com preguiça de usar os outros sentidos para dizer como se sentia. Adora LIBRAS, dança, trabalhos manuais, música, observar demonstrações explícitas de carinho e elefantes!

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