Zuleika, ditadura e moda no Brasil
Uma das razões que fazem com que uma criança seja percebida como “mimada” é o fato dela não demonstrar qualquer tipo de gratidão pelos mimos recebidos dos pais, enquanto uma das virtudes da criança “consciente” é o sentimento de gratidão por tais mimos. Independentemente, em ambos os casos essas crianças não possuem a ideia exata do esforço que os pais tiveram para realizar tal mimo, pois elas simplesmente nunca estiveram no lugar deles. Com o passar dos anos, aos poucos eu fui entendendo que, na vida, a grande maioria das coisas que são dadas, o ser humano não costuma valorizar como se deve.
Nasci em 1986: não vi Pelé jogar, nem o Zico e muito menos Maradona. Não me lembro da queda do muro de Berlim, do Cazuza vivo, nem do programa do Chacrinha. Pouco me lembro da moeda Cruzeiro, apenas de como eu nomeava suas notas quando era pequeno – “a nota da cobra”, ou “a nota do cara de chapéu”. Não fui um fiscal do Sarney, também não vi prenderem boi no pasto. Não assisti Pantanal, pouco me lembro da Guerra do Golfo. Não me lembro do “Diretas Já”, dos “caras pintadas” e tenho uma vaga lembrança do impeachment do Color.
Não sei qual é o sentimento de viver em um país regido por uma ditadura militar.
Tenho total liberdade de expressão nesse site que, assumo, nem sempre valorizo. Essa liberdade foi simplesmente dada. Por isso, quando passei ontem pelo Itaú Cultural para prestigiar a Ocupação Zuzu Angel, que foi inaugurada justamente no dia 1° de abril — data em que o golpe militar teve seus 50 anos completos no Brasil. Na exposição, tentei me aproximar ao máximo da minha “criança consciente” interior, pois a mulher “porreta” Zuleika Angel Jones, a Zuzu, passou por momentos com os militares que a minha geração mimada jamais sentiu.
Zuzu com os filhos, Hildegard, Ana Cristina e Stuart
Zuzu pode ser lembrada por muitos motivos. Foi uma mulher separada em tempos que o assunto divórcio era tabu, criou sozinha os seus três herdeiros e foi uma estilista considerada a “mãe da moda brasileira”. Na exposição que fui, o seu lado profissional foi bem ressaltado. Muitos modelos da estilista foram mostrados – que inclusive são belíssimos. Porém, o grande destaque da vida de Zuzu Angel foi a sua luta contra o desaparecimento de seu filho, Stuart – militante que na época foi preso, morto por tortura e tido como desaparecido pelas autoridades.
Enquanto o andar superior da exposição caracterizou bem um Brasil dos anos 70 em suas cores, objetos, vídeos e plantas presentes, foi legal ver o andar inferior todo dark, onde a instituição apresentou a fase da estilista posterior à morte do filho. Zuzu, que na época era conhecida por fazer modelos com estampas alegre e coloridas, passou a ter uma fase de luto em sua obra, com roupas bem sombrias. Na época, em seus chocantes desfiles negros, Zuzu, inclusive, desfilava com fotos do filho morto em mãos – e ainda existe gente babaca o suficiente pra não perceber a moda como uma baita forma de arte/manifestação.
Outra coisa legal da exposição é que a curadoria foi feita pela Hildegard Angel, filha da homenageada, em parceria com Valdy Lopes Jn, ou seja, o que está sendo apresentado veio de alguém absolutamente qualificado para traduzir a atmosfera em que viveu a estilista, coisa que em muitos momentos eu não senti ao assistir o filme de 2006, que leva o nome de Zuzu como título e conta a história de seus momentos entre a prisão e morte do filho, em 1971, e a “armadilha” que a matou em 1976 – depois de muito brigar com a ditadura através de desfiles, cartas e ações.
A verdade é que mesmo depois de quase 40 anos da morte de Zuzu, o seu ícone continua forte. Como diria Carlos Heitor Cony, “Zuzu Angel é a única mãe de mártir da história do Brasil”. Sua imagem é relembrada constantemente, como nessa atual exposição, no filme de 2006 e no momento em que o túnel Dois Irmãos, local onde foi assassinada, foi rebatizado com o seu nome no Rio de Janeiro. No filme, no instante em que Zuzu morre, está tocando no toca-fitas de seu carro a música “Apesar de Você”, do Chico Buarque (que o filme sugere que foi criada em 76, mas é de 70). A música tem aquele belíssimo verso “você que inventou a tristeza, ora tenha a fineza de desinventar”… sabe de uma coisa? Com certeza, se eu pudesse falar com a estilista hoje, eu faria uma pequena paródia e cantaria pra ela: “você que inventou a fineza, ora muito obrigado por se reinventar…” ;)
“Escreva uma carta para quem você não encontrou”
Fotos da exposição por Adolfo Martins
Foto do acervo histórico do Instituto Zuzu Angel
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