Em Berlim, Alex Flemming fala sobre arte, melancolia e caos
De quantos encontros o nosso repertório é feito? Não sei. Só sei que existem encontros que nos fazem refletir e maturar muitas ideias. Falo isso porque já faz um mês que entrevistei o artista Alex Flemming e só agora, depois de escutar algumas dezenas de vezes a gravação oriunda de nosso papo, me sinto pronto pra escrever sobre isso.
Conversei com Alex pelo Skype, ele falava diretamente de Berlim, e mesmo com tanta distância eu senti que já o conhecia. Vai ver que é porque ele, através de sua obra, já vivia em mim. Vivia, principalmente, pelos retratos que fez para a estação Sumaré, que eu contemplo constantemente pelas minhas idas e vindas na linha verde do metrô de São Paulo.
Retratos de Alex Flemming pela janela do metrô. Ontem, na estação Sumaré
Em nosso primeiro contato, Alex não me deu a menor chance de me inibir. Me acolheu com sorrisos largos e piadas, então conversamos um pouco sobre a entrevista que fiz em abril com a amiga Nasha Gil e começamos a falar, é claro, de arte.
Não demorou para Flemming desenvolver o seu raciocínio sobre o que é ser artista. “Eu sempre achei que artista é a pessoa que produz muito e produz bem. Acho que o importante é o artista mudar sempre. Artista é Picasso, é Matisse, é Max Ernst, é Volpi. São pessoas que mudaram muito o seu próprio estilo, produziram muito, não tiveram medo de ousar. Então, todo artista muda, porém sempre numa cadeia, você muda, mas permanece o mesmo, por mais incrível que isso pareça e por mais estranho que isso soe”.
Claro, se Alex conseguia espremer como poucos sobre o que vislumbrava ser um artista, também não lhe faltavam argumentos para expor o oposto. “O não artista, por mais esquisito que pareça e por mais triste que seja, é, por exemplo, Morandi. Eu sempre achei Morandi um grande cara e uma vez eu sai aqui de Berlim e fui até Bologna, onde estava havendo uma retrospectiva dele, eu vi 300 telas de toda a sua vida. São 300 telas iguais. Iguais no formato, na concepção, no conceito, na cor: isso é o anti-artista, isso é Romero Britto”. Nesse momento me era claro que eu teria uma entrevista sincera. Em nosso papo, em nenhum momento Flemming titubearia na hora de falar suas reais opiniões.
Se por um lado ele critica o “anti-artista”, por outro a história de sua carreira sustenta o motivo de ele ser chamado de “artista” dignamente. Começou estudando cinema, onde me contou que absorveu um instrumento chave para toda a sua produção até hoje: a fotografia.
No final dos anos 70, muito antes da arte urbana engolir a pauliceia, ele fez grafites ao lado de outro grande artista, o saudoso Alex Vallauri. Como o próprio Flemming disse, “arte é o que fica”. Ele conta que de sua época do grafite, não existe mais nada. “Do Alex Vallauri ficou o que eu pedi pra ele pintar pra mim em tela. Eu tenho duas telas do Alex lindas. A gente pintou tanto em São Paulo como em Nova Iorque, moramos juntos na mesma época nesses dois lugares. O Alex foi um grande amigo meu. Um grande artista”.
A primeira exposição “oficial” do meu entrevistado seria mesmo em 1980, o início de um processo produtivo que apenas enriqueceria com o tempo. “Nos anos 80 eu fiz uma série de gravuras chamada Paulistana, que são retratos da população anônima da cidade de São Paulo. Depois eu fiz várias coisas, fiz muita pintura, e daí eu comecei, a partir de 1991, a fazer pintura sobre superfícies não tradicionais. Então fiz pintura sobre animais empalhados, sobre as minhas roupas. Ultimamente eu fiz pintura sobre computadores, a minha série “Lápides”.
Lápides (Foto: Revista Brasileiros)
“Fiz várias coisas e depois desses 20 anos sem pintar em tela, me deu uma vontade intrínseca de voltar ao tradicional. Por quê? Porque nada é tabu, nem mesmo a tradição. E daí eu queria retomar a ideia do retrato, que foi uma coisa tão importante na história da arte, do renascimento até o fim da Segunda Guerra Mundial. A partir do momento em que a guerra acabou, com o deslocamento do eixo cultural de Paris para Nova Iorque, você tem a ascensão do abstract impressionism e o abandono às traças de tudo o que é retrato, o retrato virou o cocô do bandido. Uma das grandes exceções é um brasileiro fenomenal que é o Portinari, que foi um grande retratista, entre outras coisas”.
Mas o artista dá voltas e quebra paradigmas em seus retornos.
“Talvez, exatamente por isso [esse tempo pintando em superfícies diferentes], eu resolvi retomar a ideia do retrato e fazer uma série em que me dedico faz cinco anos, e sempre é importante você trazer uma coisa absurdamente nova, porque é assim que a humanidade anda. Minha série “Caos” é de retratos e ao mesmo tempo é o anti-retrato. Porque é um retrato onde não há pele, não existe epiderme, as pessoas são transparentes. Elas flutuam sobre um fundo preto e prata, elas estão vestidas, só que elas não existem, elas são transparente, ou seja: esse fundo preto e prata é o caos de onde nós viemos, porque a gente não sabe de onde veio. E também é o caos da morte e a entropia, é pra onde nós iremos, pra onde nós voltaremos, que a gente também não sabe onde é”.
“Todas as obras dessa série advém de fotos que eu tiro de pessoas que eu conheço. De pessoas que eu conheço bem, ou, por exemplo: eu fui uma vez no oftalmologista, daí eu achei aquele aparelho tão sensacional que eu pedi pro doutor sentar e ser o paciente.”
Uma coisa que me chamou muito a atenção dessa série foi o uso de objetos marcantes na grande maioria dos retratos e comentei isso com o Alex. “Os objetos fazem parte do zeitgeist específico. Então, você pondo na obra os objetos atuais, eles vão denotar uma fatia do tempo e isso vai ser interessante no futuro. Um exemplo é de quando eu fiz a série em que eu pintei as minhas próprias roupas, que é uma série sobre a solidão. Essas roupas ainda são atuais, porque a roupa, a indumentária, muda muito lentamente, porém ela muda irreversivelmente. Quando alguém para de vestir um tipo de casaca, ela nunca volta. Então, daqui a muitos anos essa série também vai ter o seu zeitgeist. Eu acho importante a gente refletir no nosso tempo e também, todos os artistas, ou pelo menos as pessoas que eu considero artistas, refletem o seu tempo e tem alguns temas básicos, que eles sempre voltam, mudando constantemente, mas eles voltam. Eu volto ao retrato, mas acima de tudo eu volto à morte. A série “Caos”, é uma série sobre a morte. Como quando eu fiz a série das minha roupas pintadas, que foi uma série sobre a minha solidão, assim que cheguei na Alemanha. Agora, dentro da série “Caos” estou começando uma mini-série que é sobre a solidão. São homens sentados em uma cadeira e do lado uma cadeira igual, sozinha. Isso é solidão, ou seja, você acha que tem tudo e a cadeira do lado está vazia. É a solidão. A solidão é intrínseca à pessoa. Nascemos sós e vamos morrer sós”.
Essas são palavras de um artista que já viajou muito, e em cada parada da vida teve que absorver uma nova língua, um novo estilo de vida e com tudo isso, teve que sentir a solidão. Talvez Flemming tenha sido uma das pessoas que presenciei falar de forma mais bonita e sensata sobre a melancolia. Sobre a morte também. Me lembro de uma exposição sobre o tema que vi em Londres, seu nome era “Death: A self-portrait”. Com certeza a série “Caos” poderia estar lá.
Também falei com ele sobre sua questão de se mudar tanto de cidade, já ter vivido em tantos lugares, então ele atribuiu isso a uma questão “carmática”. Filho de um piloto com uma aeromoça, Alex se mudou para os Estados Unidos com apenas três anos de idade e daí não parou mais de se mudar.
Bacana também é entender o seu processo de criação, que como comentei anteriormente, é baseado na fotografia. “Eu não sou um romântico. Sou absolutamente cerebral. Eu vejo a pessoa, penso na foto e peço pra pessoa posar como eu quero. É ‘egotrip’? É mesmo. Eu sou artista. A arte é a expressão do indivíduo artista, é por isso que eu não acredito em coletivos. Não existe coletivo! Vai existir o artista. Ou é a sua assinatura ou no coletivo vai ter o cara que sempre faz a coisa acontecer. Não dá. A exceção são Os Gêmeos, estes sim são uma pessoa só”.
Que delícia entrevistar alguém que cria rupturas não apenas de forma artística, mas também em opiniões em que o senso comum insiste em papagaiar. A verdade é que encontrar Alex Flemming, mesmo que de forma virtual, foi um grande aprendizado. Uma pessoa divertidíssima, que fala da morte rindo e não tem medo de ser ele mesmo. Um encontro que enriqueceu meu repertório e que se não fosse o fuso horário alemão poderia ter durado ainda mais tempo.
Tempo? Aprendi que tudo isso é caos.
Foto de capa por Leticia Moreira/Folhapress
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