Assuntos

Rivera e Siqueiros. Trotsky e Stalin

A Cidade do México como cenário de murais e rivalidades.

por Adolfo Caboclo, 14 de julho de 2020
, ,
Mural de Rivera no Palácio Nacional

Mural de Rivera, no Palácio Nacional

 

Flaneando em algum café pela Cidade do México, me perco no Laberinto de la soledad de Octavio Paz. Sou resgatado quando fones de alto-falante me proporcionam ritmos de Natalia Lafourcade y Los Macorinos. Diante do resgate, lembro que Levi-Strauss disse em seus Tristes Trópicos que as cidades latino americanas passam “da barbárie à decadência sem conhecerem a civilização”. São cidades que não mantêm suas construções e negam seu passado histórico. Definitivamente, essa lógica proposta por Strauss não parece acontecer na capital mexicana.

Muitos detalhes na CDMX evocam uma narrativa histórica. Pelas estações de metrô, museus, buracos e passarelas da cidade, se vê fragmentos da magnificência pré-hispânica. Pedaços de civilizações que ainda são parte desse povo que, em algum momento de sua história, conseguiu fazer da revolução uma realidade que tantos outros países do continente jamais alcançaram. Eduardo Galeano, em Veias Abertas da América Latina, diz que Emiliano Zapata personifica a figura do mais virtuoso e incorruptível dos guerreiros do povo – aquele que mesmo depois da vitória seguiu com seus ideais em defesa dos mais pobres, feito que nem mesmo Simón Bolívar realizou. Fato é que, ao contrário de nós, boa parte dos mexicanos conhecem seus antepassados e seus revolucionários.

Parte dessa narrativa não colonizada que é apresentada nesse país – que conhece o império asteca; lembra de sua revolução e de seus personagens; que se entende como não europeia; compreende o significado da figura do colonizador e tem consciência de classe –, se deve ao que é conhecido como movimento muralista, que surgiu no começo dos anos de 1920 para fomentar os ideais igualitários pós Revolução Mexicana – além de ecoar esteticamente elementos das artes pré-hispânicas. O muralismo é uma forma de democratizar a arte fazendo pinturas em grandes dimensões nas paredes de prédios públicos e, também, usar a arte de forma educativa, algo similar ao que a igreja católica fez na idade média, ao ensinar a bíblia por meio de imagens para uma população majoritariamente analfabeta (não, não foi o grupo de WhatsApp da sua família que inventou esse negócio de formar opinião por meio de imagens).

Onde quero chegar? Existiram três grandes artistas muralistas mexicanos: José Clemente Orozco, Diego Rivera (o marido de Frida Kahlo) e David Alfaro Siqueiros (que talvez você conheça pelo “quadro das mãos”, que aparece na série do Chapolin Colorado. A obra chama-se “Nuestra imagen actual” e é de 1947). Dois deles, Rivera e Siqueiros, protagonizaram uma baita rivalidade, algo similar ao que vimos com Picasso e Matisse; Pelé e Maradona; Ivete e Claudinha Leite.

Comecei esse texto falando sobre a delícia de flanear pela Cidade do México tomando xícaras de café aguado, para registrar aqui um bairro que julgo ser especialmente delicioso para bater pernas: el barrio de Coyacán, região que abriga feiras de artesanato e uma praça onde ocorrem danças típicas. É também nesse bairro que fica a Casa Azul, local onde viveu Frida Kahlo durante boa parte de sua vida.

Outra atração de Coyacán é tomar um bom café no jardim do Museu Leon Trotski, casa onde o revolucionário bolchevique viveu por alguns anos e foi assassinado. Essa passagem histórica foi bem narrada pelo filme “O assassinato de Leon Trotsky” (Joseph Losey, 1972), onde o assassino, Ramón Mercader, é representado por Alain Delon e as gravações foram feitas na própria casa onde hoje é o museu.

Lembra que falei sobre os muralistas? Foi Diego Rivera que articulou a vinda de Trotsky para a Cidade do México. Trotsky veio para a América fugindo de Stalin e, assim que chegou na cidade, passou um tempo morando com Frida Kahlo e Diego – inclusive teve um caso com a artista – e, algum tempo depois, foi morar na casa onde foi assassinado. Durante sua estadia na casa em Coyacán, Trotsky sofreu vários atentados feitos por stalinistas – em um deles, uma série de homens metralhou seu quarto e o russo se salvou ao se jogar debaixo da cama. Um dos homens que participou desse atentado foi o muralista, stalinista e rival de Rivera, David Siqueiros. Essa é mais uma cena bem registrada no filme comentado.

Ao saber que Siqueiros, um dos meus pintores prediletos em toda a história da arte, gênio da pintura, foi capaz de ostentar uma metralhadora e fazer rajadas com ela, comecei a me perguntar: que loucura foi o stalinismo? Vai demorar muito para os fanáticos tupiniquins começarem a nos metralhar gritando “mito”? Por qual motivo Trotsky foi perseguido no México?

Para nos ajudar a compreender essas e outras questões, entrevistei o bacharel em filosofia, licenciado em ciências sociais, mestre e doutorando em ciências sociais, que entende muito de marxismo, Danilo Peixoto de Miranda. Confira o papo a seguir.

Não Só o Gato – Você poderia nos explicar, de uma forma didática, essa rivalidade entre Trotsky e Stalin? Eles não deveriam estar do mesmo lado?

Danilo Lenin, Trotsky e Stalin foram os principais nomes da revolução russa. Lenin e Trotsky se destacaram por liderarem o período revolucionário e Stalin, apesar de ser um homem mais afeito à burocracia – portanto fora dos “holofotes” da revolução –, ganhou força após a morte de Lenin na disputa por sua sucessão no comando do Estado Soviético.

Trotsky e Stalin eram opostos em vários aspectos. Trotsky vinha de uma família abastada, teve excelente educação e era um intelectual. Stalin, de origem pobre, apesar de ter escrito alguns livros importantes, estava longe de ser um intelectual. Era um tipo mais fechado, até mesmo “rude”, como disse Lenin em seu testamento.

NSG Então o testamento de Lenin parece não ter ajudado muito?

Danilo O testamento de Lenin foi fundamental para o desfecho trágico de Trotsky. Lenin tinha ponderações tanto com Stalin quanto com Trotsky. Contudo, Stalin era mais “perigoso” em sua avaliação e, portanto, o futuro da URSS estaria melhor nas mãos de Trotsky.

O testamento deixou Stalin furioso, e ele escondeu seu conteúdo enquanto pôde (anos depois o documento foi revelado pela imprensa internacional). A partir daí, começou a perseguição a Trotsky, que acabou sendo expulso do partido e passou ao exílio por vários países até se instalar definitivamente no México a convite do Diego Rivera.

NSG E mesmo com Rivera, lá no México, ele seguiu sendo perseguido.

Danilo Mesmo apartado da revolução que ajudou a construir e a milhares de quilômetros da URSS, Trotsky ainda representava perigo para Stalin. Principalmente pelo seu vigor intelectual e sua constante produção literária. Na época em que foi assassinado, inclusive, estava finalizando uma biografia de seu algoz. O livro sobre Stalin acabou sendo publicado postumamente.

Stalin, após a morte de Lenin e o afastamento de Trotsky do comando da URSS, inaugurou um período de hegemonia de poder. Muitos, dentre os quais me incluo, avaliam que seu governo – apesar de grandes acertos, como a derrota imposta ao nazismo e o apoio às lutas de libertação nacional do século XX – representou uma contrarrevolução, além das imensas atrocidades que cometeu, como o assassinato de opositores.

NSG – Mesmo assim, como que pessoas, como Siqueiros, estavam dispostas a metralhar Trotsky por Stalin?

Danilo Stalin e a URSS contavam com um apoio tremendo, inclusive fora de seu território. Muitos nutriam por Stalin uma fidelidade cega, que foi chamada erroneamente por alguns marxistas de “culto à personalidade”. De fato, não seria possível explicar o assassinato de Trotsky sem um componente psicológico que o tenha pautado. Ramón Mercader é a figura mais exemplar nesse aspecto. A mando de Stalin e sob a “direção” de uma mãe fanática pelo regime soviético, se infiltrou como pessoa íntima à família de Trotsky, assassinando-o com uma picareta em seu próprio escritório em 20 de agosto de 1940.

Em 1956, após o XX congresso do Partido Comunista da União Soviética, em que Kruschev revelou publicamente os crimes de Stalin (que havia morrido três anos antes), Trotsky, que era tido oficialmente como um traidor da revolução, começou a reconquistar merecidamente seu espaço. No Brasil, sua influência foi enorme a partir dos anos 70 – muitos dos intelectuais que fundaram o PT eram trotskistas. Já Stalin perdeu seu prestígio vertiginosamente, tendo sido até toscamente comparado com Adolf Hitler, ditador este que dificilmente seria derrotado sem a decisiva participação bélica da URSS, sob o comando de Stalin.

 

Mural de Siqueiros, no Castelo de Chapultepec

Mural de Siqueiros, no Castelo de Chapultepec

No Museo Leon Trotsky, em 2019

No Museo Leon Trotsky, em 2019

"Nuestra imagen actual" (1947) de Siqueiros, no MAM da CDMX

“Nuestra imagen actual” (1947) de Siqueiros, no MAM da CDMX

Frida e Trotsky, em 1937

Frida e Trotsky, em 1937

Adolfo Caboclo

Artista e pugilista. @adolfinhocaboclo

More Posts

Comentários