A graça e o sublime
Suspiro com passarinhos, tremo com o mar.
A garoa intensifica o cheiro de mato, o mato se torna refúgio na quarentena. Diante dos dias frios do inverno na Serra do Mar, encontro algum calor em livros, cuias de chimarrão e fungadas em rapé. Talvez depois do anoitecer eu queira beber cachaça, queimar uma lenha, mas lembro que preciso terminar livros de filosofia e o meu quadro.
Não gosto de filosofia. Na noite passada, o céu estava estrelado e bateu aquela revolta por sermos tão alienados ao ponto de desconhecermos as constelações que nos coroam. O céu estrelado é proibido aos seres da metrópole. Para estes, apenas miudezas em uma tela de celular. Queria entender cada uma dessas constelações, ler livros sobre astronomia, mas no momento tenho que ler sobre filosofia. Nunca poderei fazer um mestrado sem entender o que é, segundo Platão, o “bom e o belo”, mesmo que um mestrado não signifique nada diante da grandeza cósmica.
Já que não posso identificar constelações, ao menos encontrei um pouco de tempo para estudar os passarinhos. Antes de vir para o mato comprei um livro de ornitologia chamado Aves: Estado de São Paulo (Edson Endrigo, 2010). Por causa dele e de algumas pesquisas no Google, neste instante, sei que duas lavadeiras-mascaradas (Fluvicola nangeta) e um pardal (Passer domesticus) pulam aqui do lado, no jardim. Acho graça e, por acaso, para isso os livros de filosofia me serviram: para entender melhor a graça.
A graça, ao contrário da beleza, não segue uma métrica ou uma fórmula. Ela vem de um suspiro, de um piscar, de algo incontrolável, breve e que acaba sendo mais potente que a própria beleza. Entender isso faz com que aquela frase que diz que “a pessoa é bonita, mas não tem graça” fique ainda mais profunda. Acho que a graça tem alguma relação com o carisma, embora não tenha estudado profundamente sobre isso. Só sei que o ser carismático tem alguma relação com a beleza divina. Que uma pessoa “sem graça” ou “desgraçada” deve ser infeliz. Como diz Ataulfo Alves, “você passa eu acho graça”. O ser carismático arranca um suspiro, uma risada, algo divino que é mais belo que a própria beleza. Escrevo isso suspirando ao ver cada um dos passarinhos que me circundam. Acho graça.
Impressionante como o ser desgraçado não consegue ver a graça e, por isso, a confunde e a externaliza por meio da violência. A confunde com a agressão, com o racismo, o preconceito, a misoginia e a xenofobia. Soltam risadas perversas em vez de suspiros. Com isso, veem carisma na personificação do obscurantismo. Triste.
Nesses dias no mato, também ando descobrindo novas graças em Fernanda. Suas investidas em quebra-cabeças, em pular corda e em esportes como o frescobol se apresentam com grande genuinidade. Ela está de férias e, enquanto comento sobre os livros que estou lendo, como o de Platão, ela comenta podcasts sobre infância e educação e a obra que acabou de ler, A menina da montanha (Tara Westover, 2018). Todas as tardes, quando uma revoada com o peito branco e costas de um azul intenso fazem voos rasantes para caçar insetos e beber água da piscina, eu e ela observamos e discutimos sobre esses pássaros que vêm nos visitar. Falo que são andorinhas-domésticas-grandes (Pyogne chalybea), Fernanda acha que não. Falamos sobre isso todos os dias durante alguns minutos. Nenhum dos pássaros pousa, seguem com seus voos rasantes e não conseguimos os observar com calma. Nunca chegamos a uma conclusão.
Quando falo sobre a graça, me baseio em um texto de André Félibien, Diálogos sobre as vidas dos mais excelentes pintores antigos e modernos, de 1666. Antes da graça ser especificamente refletida, os pensadores medievais apontavam uma ideia de que a beleza é relacionada ao que é pequeno – o passarinho, o gatinho, o cachorrinho. E isso me parece estranho, porque eu gosto de passarinho, mas o que eu acho bonito mesmo são as estrelas e a grandeza do céu da noite no mato.
Os maçantes livros de filosofia também me ensinaram que a beleza da grandeza do céu se chama sublime. Sublime, por exemplo, é o que representa o pintor inglês do século XIX, William Turner – talvez o maior de sua época em seu país (para mais informações sobre ele recomendo o filme do diretor Mike Leigh, Mr. Turner, de 2014). Sublime é aquela coisa tão volumosa, gigantesca, sem proporção humana, que não dá nem para falar que é bonita, apesar de ser maravilhosa. O céu do mato é um exemplo do sublime. Outro exemplo é o mar, que você pode admirar, mas que ele também pode te destruir. Diante do mar você é um grão.
Aqui no mato, quando vejo uma nuvem escura encobrir a serra e os ventos se enfurecerem, logo penso: “lá vem Tupã”. É natural que os povos da floresta vejam deuses em coisas sublimes, como raios e astros. Leonardo da Vinci chegou a dizer antes de morrer que era uma loucura que, em um mundo com tantas belezas, acreditemos em um único deus. A verdade é que a maioria das civilizações surgiu politeísta, do ocidente ao oriente, e o que mudou isso foi a Idade Média. Acredito que para cada coisa sublime tem que ter um deus. Afinal de contas, não tenho medo de subir em um ringue ou em um tatame, mas me estremeço diante de um avião, do céu e da gravidade que não têm proporções humanas.
Ferreira Gullar disse que “a vida não é boa nem ruim, a vida é vida”. A real é que a vida é um belíssimo exemplo do sublime. Você pode admirar, mas se der mole ela te engole. É muito maior que você.
Acho que arrumei tempo para ler sobre passarinhos em vez de ler sobre constelações por conta disso: admiro o infinito, mas tenho medo. Enquanto escrevo, passou aqui do lado um elegante quero-quero (Vanellus chilensis). Me acalmo em vez de me instigar.
Por falar em calma, acho que vou me apressar. Terminar meu quadro. Hoje à noite quero olhar o céu e beber cachaça. Não é tempo de entender o cosmos, mas de passarinhar.
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