Azul flauta, verde violino e vermelho tambor
Em uma aula sobre cinema, um professor me disse que “uma criança, desde bebê, possui o contato com a língua portuguesa e nem por isso ela já cresce alfabetizada. Então, por qual motivo uma pessoa, apenas por assistir televisão desde a infância, deve se tornar um adulto que entende de filmes”?
Esse exemplo do meu professor, essa advertência de que nem sempre apuramos nossos olhos o suficiente para vermos o mundo, nossos ouvidos para escutarmos, paladar para degustarmos, não é uma ponderação com relação exclusiva ao entendimento do cinema ou da arte. É uma reflexão sobre tudo aquilo que nossos sentidos podem absorver. Devemos seguir o conselho da música de Chico Buarque, “fume Ary, cheire Vinícius, beba Nelson Cavaquinho”, mas também devemos nos trabalhar para podermos absorver as delicadezas do existir.
A plenitude de mergulhar em um bom gole de café; de destrinchar ondulações no canto dos pássaros; de vibrar da mesma maneira que vibra a benzedeira e em cada mirada se perder e se encontrar em formas e em cores.
Particularmente, me alegro ao tentar possuir um entendimento honesto da forma e da cor. Pouco tempo atrás, tratava as cores de forma vulgar, sem a complexidade que elas possuem. Então, meu mestre Manoel me ensinou novamente aquilo que certa vez aprendi na infância e não deveria ter esquecido: que toda cor vem do azul, vermelho e amarelo. Na tinta – pigmentos aglutinados –, infinitas cores se apresentam ao mesclarmos o vermelho cádmio, o azul da Prússia, o amarelo cádmio e o branco titânio na paleta.
Engraçado, esse conhecimento adquirido na infância e reaprendido na maturidade me trouxe questionamentos dignos da ingenuidade de um menino: se o mar Mediterrâneo é azul e o oceano Atlântico é verde, de onde veio o “pigmento” amarelo para esverdear o azul das águas?
O mar tem forma e cor. Além disso, o mar tem ritmo. Não é só o movimento que tem ritmo, a cor também. Por exemplo, Piet Mondrian fez, dentro de sua lógica neoplasticista, a constante quebra do ritmo em seu quadro Brodway Boogie-Woogie (1943). Em 1937 ele já dizia, em seu texto Arte plástica e arte pura, que o “boogie-woogie busca realizar na música a mesma coisa que busco fazer na pintura: a destruição da melodia que equivale à destruição da aparência natural; e a construção por meio da oposição constante dos meios puros – ritmos dinâmicos”. Mondrian foi um homem que usou apenas a pureza do azul, vermelho e amarelo em suas obras. Chegou a ver a cor e a forma como uma espécie de religião em seu próprio trabalho. Acho graça quando Lygia Clark, em sua Carta a Mondrian, de 1959, fala “você era homem, Mondrian, lembra?
Ao falarmos de cores e ritmo, acho que nada é mais pedagógico do que a metáfora que o professor Wassily Kandinski usa em seu texto A arte concreta, de 1938. Neste ele fala que o parentesco entre a pintura e a música é evidente, “ouvimos a cor e vemos o som”. Uma pintura é como se fosse uma orquestra, onde o amarelo tem uma capacidade especial de subir o tom; o azul é o contrário, abaixa, funciona como um violoncelo, quando o azul é claro é como se fosse uma flauta; o verde representa os tons médios, assim como violinos. E o vermelho? Segundo Kandinski o vermelho é um tambor! Forte, pulsante.
Sempre gostei de vermelho – minha mãe, que é “bruxona”, diz que fui cigano em outra vida –, a verdade é que o vermelho é historicamente a cor da resistência. Quando alguém fala que sua bandeira “jamais será vermelha”, certamente não sabe como a Missão Francesa, através das mãos de Debret, idealizou nossa bandeira usando a cor verde para simbolizar a Casa de Bragança, dinastia que Dom Pedro I fez parte; a amarela para representar a dinástica de Habsburgo-Lorena, de D. Leopoldina e o losango como uma referência à bandeira napoleônica. Também não espiou a ideia de nacionalismo apresentada pelo sociólogo jamaicano Stuart Hall, que basicamente sugere que um país é um “cercadinho”, imposto de forma militar, onde quem está do lado de dentro pode se adaptar e viver, ou não se adptar e ser exterminado – veja o exemplo dos povos da floresta.
Historicamente o vermelho é um tambor com um som que vai muito além do Partido dos Trabalhadores. Mas quem somos nós para vermos tudo, não é mesmo? Ainda nem aprendi a ver um filme.
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