Quando a noite vira objeto de estudo
A gente vai para o boteco, o restaurante, o cinema, a balada. Encontra amigos, namorados, familiares, colegas de trabalho. E volta de táxi, ônibus, carona ou nem volta — decide dormir fora de casa.
Há sempre muitas possibilidades na noite paulistana. A gente sempre pode terminar uma noitada em algum lugar muito diferente daquele em que começamos. São inúmeras as possibilidades oferecidas que tanto fascinam quem na cidade vive. Fascina, pelo menos, a mim.
E por isso fiquei muito curioso quando vi o anúncio do Seminário da Noite Paulistana, evento que teve a noite como tema de reflexão, debate e teoria. A noite, que tanto aproveitamos sem pensarmos sobre as implicações, sendo estudada por um grupo de pensadores? Sim, a noite como um objeto de estudo acadêmico.
Participei da programação de quarta-feira, 19 de março, que incluiu um debate sobre planejamento urbano pensado para e a partir da noite urbana e uma palestra sobre o aproveitamento de grandes cidades mundiais no período noturno.
De todos os assuntos abordados, alguns me chamaram muito a atenção. Atenção esta de um comunicólogo interessado na noite, não um pesquisador do assunto. Ao observar a plateia, composta por muitos urbanistas, arquitetos, empresários e engajados no tema, me certifiquei de que eu não seria o mais adequado para escrever sobre o que foi dito ou discutido. Tenho considerações muito pessoais sobre o que assisti, e portanto superficiais perante tudo o que foi discutido no seminário. Só posso garantir uma coisa: meu olhar sobre as noites de São Paulo será muito diferente depois disso.
O assunto que mais me interessou foi o cronourbanismo, que tem como intenção refletir sobre os espaços urbanos não só pelas dimensões territoriais ou geográficas, mas também pela dimensão do tempo. Pensar que além de onde as pessoas estão, também é preciso saber quando as pessoas estão. E esse quando é muito além do “horário comercial”. Essa questão é crucial para valorizar a cidade não como espaço único de trabalho, mas a partir dos seus vários usos. “Valorizar a cidade como um espaço policrônico”, foi o que disse o geógrafo e pesquisador francês Luc Gwiazdzinski.
Quando o poder público reconhece que os movimentos da cidade são muito mais amplos do que casa > trabalho > casa, nasce uma nova cartografia da cidade, gerando fluxos específicos para noites, madrugadas e finais de semana. Parece óbvio para nós que tanto aproveitamos a cidade, não é? Para o poder público, nem tanto: o planejamento de ônibus em São Paulo ainda é baseado no percurso entre residência e emprego dos paulistanos. Nas palavras do secretário de desenvolvimento urbano de São Paulo e um dos participantes do debate, Fernando Mello Franco, só agora estão sendo mapeados demais fluxos de mobilidade, o que deve relevar eixos de reestruturação e transformação urbana.
Debate sobre poder público e planejamento urbano
Quem acompanha as transformações sociais da cidade — e muitas vezes são os responsáveis por promover as mudanças — são os empresários que investem na noite. Facundo Guerra, proprietário e sócio de estabelecimentos que amamos frequentar, como o Cine Joia, Lions, Z Carniceria e Riviera — este último em sociedade com Alex Atala, avalia que uma nova cidade surge a partir da busca de uma identidade genuinamente paulistana. Enquanto antes éramos reconhecidos como workaholics, a busca por entretenimento nos trouxe uma nova identidade. Nas palavras de Guerra, “dos workaholics que não sabiam sambar aos que buscam o entretenimento como válvula de escape para enfrentar a cidade’”.
É inevitável que a cidade acompanha essa transformação social. Um exemplo citado foi a regularização do Buraco da Minhoca como espaço para festas. O ‘minhocão’ do trânsito carregado de segunda a sexta abre espaço para um local festivo aos finais de semana. Workaholic e folião.
O conflito entre as identidades citadas pelo Facundo Guerra revela uma tensão inerente às noites das grandes cidades: a diferença de intenções entre os que querem aproveitar a noite e os querem acordar cedo. Todos os participantes do debate foram bem incisivos quando assumiram que existe esse conflito de interesses, e citaram os recentes protestos de moradores da Vila Madalena às festas e comemorações nas ruas do bairro, assim como os bailes funks que ocorrem em ruas e vielas das favelas de São Paulo, como na Vila Prudente.
Essa crise ultrapassa fronteiras e chega a outras grandes cidades e capitais mundiais. Foi o que disse Luc Gwiazdzinski, ao final da programação, acrescentando ainda o conflito de gerações aos desafios de se desenvolver a noite urbana. “Há uma tendência nostálgica de que antes tudo era melhor, e por isso não reconhecem os novos caminhos criados, sobretudo os que surgem à noite”. E a próxima frase presente na apresentação de Luc é tão bonita no idioma original que até evito traduzir: La nuit révèle l’homme.
A noite revela o homem. A noite me revelou várias vertentes. Antes, a noite urbana era para um espaço de diversão e entretenimento. Agora, quando acessei tanta informação, vejo a noite com novos olhares. Posso dizer que as minhas noites em São Paulo não serão mais as mesmas.
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