Crítica: Hélio Oiticica, a dança na minha experiência
Em um planeta pandêmico, o MASP reabriu suas portas após sete meses. Com a proposta de falar sobre dança, o museu reaparece no roteiro da cidade com quatro exposições temporárias e seu precioso Acervo em transformação. Neste contexto, a exposição mais aguardada era, sem dúvidas, a de Hélio Oiticica, a dança na minha experiência.
Oiticica segue sendo um dos nomes brasileiros que mais se destaca no cenário nacional e mundial. Em “bíblias” do mundo da arte, como o Theories and documents of contemporary art, de Kristine Stiles e Peter Selz, e publicado pela editora da Universidade da Califórnia, o artista brasileiro protagoniza citações nas páginas do capítulo sobre abstração geométrica, ao lado de nomes como os de Max Bill, Wassily Kandinsky e Joaquín Torres Garcia. Tal destaque na bibliografia dos “colonizadores” é um lugar onde receio que nossos modernistas não tenham chegado. Herschel Chipp não olha para o Brasil em suas Teorias da Arte Moderna; Giulio Carlo Argan apenas cita Cândido Portinari em sua Arte Moderna.
Ainda olhando para o “moderno”, o próprio Oiticica disse ter flertado com a manifestação antropofágica de Oswald de Andrade para desenvolver a sua obra Tropicália, onde se buscava um rito imagético. Foi esta, aliás, o estímulo que nutriu a natureza subversiva de Caetano Veloso e outros músicos para fundarem o movimento tropicalista. Entre os anos de 1980 e 1990, Hélio também viria a ser a grande inspiração para Liam Gillick, artista do Young British Artists. No cenário nacional, a relevância de Oiticica é absoluta. Na bolha do mundo das artes, é uma fantasia comum imaginar como seria tomar uma cerveja em uma roda com Oiticica, Mário Pedrosa e Lygia Clark.
Diante dessas e tantas outras informações sobre o artista, o MASP propôs uma exposição que já geraria, naturalmente, uma expectativa alta em um cenário pré-pandêmico. A boa fase da instituição também alimentava essa expectativa inflacionada, após vários recordes numéricos com a exposição Tarsila Popular. Recentemente, o museu ganhou o Prêmio Paulo Mendes de Almeida de melhor exposição de 2019, entregue pela Associação Brasileira de Críticos de Arte. Com essa conjuntura, e com uma exposição originalmente planejada para o “antigo normal”, o museu propôs suscitar um diálogo com a Nova Objetividade Brasileira.
Vivemos em um momento propício para bailar? Na parte que cabe à segurança dos funcionários e do público, o MASP não errou seus passos. Com horários marcados, ingressos comprados apenas online, filas com demarcações para espaçamentos, muitas máscaras, luvas e álcool em gel, a experiência de entrar na exposição transmite toda a segurança que se espera de um ambiente controlado como um museu.
A segurança que reduz a capacidade máxima de visitantes no museu é a mesma que enfraquece o “terceiro item” descrito pelo próprio Oiticica em seu Esquema geral da Nova Objetividade, apresentado em catálogo do MAM carioca em 1967: a “participação do espectador”.
No subsolo do museu de Chateaubriand, paredes rubras nos levam intuitivamente para a exploração do espaço de forma circular. No teto, Relevos espaciais fazem a primeira dança que se pode perceber, dialogando justamente com as escadas vermelhas de Lina Bo Bardi, presentes na arquitetura do próprio edifício.
As obras que foram feitas por Oiticica em seus tempos de Grupo Frente funcionam: ver tantos Metaesquemas juntos foi um privilégio que minha geração ainda não tinha desfrutado. Esses são dispostos de tal forma que valoriza um ritmo e, ao acompanhá-los, parecem se oferecer para um salto do papel cartão para a tridimensionalidade. Esse salto acontece e pode-se ver, através da presença da obra protagonista da área central da exposição, o Grande núcleo (1966), ou pelo menos parte dele.
E são nas paredes vermelhas que se encontra o que, talvez, seja o objeto que mais funciona em toda a exposição: a bandeira Seja subversivo, seja herói, serigrafia de 1968 que pertence ao Museu de Arte da Filadélfia. A obra dialoga com o espectador que conhece Hélio Oiticica e, também, com aquele que não sabe quem é o artista. Ela também transmite a “tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos”, que Oiticica aponta em seu Esquema geral, e nos convida para uma reflexão comparativa entre o ano de 1968 vivido pelo artista e o ano de 2020 em que vivemos.
Enquanto Seja subversivo, seja herói parece crescer diante da lógica expográfica, o Grande núcleo, já diminuto fisicamente – a exposição apresenta cerca de um terço do seu corpo original –, também é prejudicado funcionalmente: a institucionalização da obra de Hélio Oiticica impossibilita a concepção original de circulação dos espectadores entre Núcleos e o manuseio dos Bóides. Se, por um lado, Seja subversivo, seja herói funciona muito bem por ser uma bandeira, por outro, o B33 Bóide caixa 18 “Homenagem a Cara de Cavalo” (1965-1966) perde a maior parte de sua potência original, mesmo transmitindo uma mensagem tão ressonante à da bandeira: Bóides foram feitos para dançar na mão do público, Núcleos para ser “pista”.
Falo das obras de Oiticica inseridas nesta exposição, partindo mais de referências da Nova Objetividade e menos como um neoconcretista ou um geométrico abstrato. Digo isso por dois motivos. Primeiro pela sensibilidade de colocarem um provocante Bicho – da década de 1960, metal que dança entre panos e madeiras – de Lygia Clark na exposição, e, segundo, por entender que os protagonistas da “dança na minha existência” proposta pelo MASP são os Parangolés (ostentado por Caetano Veloso na capa do excelente catálogo) e seus precursores, Penetráveis, Núcleos e Bólides.
Suponho que, visivelmente, a ideia inicial do museu era que seus visitantes pudessem interagir com as réplicas dos Parangolés, e a prova disso são os espelhos dispostos na frente dessas obras. O espaço, no entanto, acabou tornando-se um foco de selfies. Por essas e outras, é possível concluir que a pandemia inviabilizou o planejamento curatorial original. Em tempos pandêmicos, em vez de utilizarem Parangolés, os presentes utilizavam máscaras antivirais pesadíssimas, sugerindo uma mistura de impossibilidade e medo de interagir com obras que ganhariam vida ao se relacionar com o espectador.
Esse não bailar é culpa exclusiva do vírus?
Minha experiência presenciou um subsolo de Oiticica bem vazio e um último andar de Acervo em transformação no limite da capacidade máxima no número de pessoas permitidas. Acredito que a maior parte da tropicalidade de Oiticica se encontrava na cidade do Rio de Janeiro, e não em São Paulo.
A última vez que vi a Estação Primeira de Mangueira pedir passagem na Avenida Paulista foi na Ocupação Cartola, em 2016, no Itaú Cultural. A ocupação, mesmo em um Brasil com o convívio social sem restrições, usou e abusou de vídeos, registros, e chegou até a montar um boteco no meio do acervo.
O material da exposição de Oiticica aponta a presença de vídeos do cineasta Ivan Cardoso sobre a atmosfera vivida pela obra do artista na comunidade da Mangueira, mas estes não estavam expostos no dia da minha visitação.
Acredito que Oiticica ficaria feliz se colocassem, por exemplo, sua mesa de sinuca em seu “mundo”; ou telas e sons com algum batuque antigo. Talvez as pessoas da Avenida Paulista não se conectem tanto assim com o verniz neoconcretista. Observando sucessos recentes, é impossível não fazer o exercício de imaginar um Oiticica Popular.
Hélio Oiticica, a dança na minha experiência é uma exposição imperdível. Extremamente educativa, acompanhada de palestras, oficinas e seminários (como Mário Pedrosa tanto sugeriu em seus livros). Diante de crises, existe o constante questionamento sobre o que poderíamos ter feito de diferente. Na ausência do gabarito da vida, sempre teremos dúvidas, por mais coerentes que sejam as respostas. Foi assim com Hélio Oiticica, nos anos de 1960, e também é assim nos dias de hoje. Essa dança acabou surgindo com movimentos restritos e aparecendo justamente em um emaranhado de incertezas, tensões políticas e pandêmicas. Fico com o lema, o grito da Nova Objetividade Brasileira, sempre redigido por Oiticica em caixa alta: DA ADVERSIDADE VIVEMOS!
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