Antônio, Regina e Neosaldina
Duas histórias de rodoviária de um menino que parece que ainda não virou moço.
Eu cheguei à véspera do feriado da Consciência Negra com um propósito muito especíifico — e determinado — na minha cabeça: fazer sexo. Era simples assim. Era uma vontade que vinha logo depois do meu desejo mais íntimo de ir ver o mar: eu também estava desesperado por praia. Se pudesse fazer sexo na praia, tanto melhor. Mas essa era uma hipótese quase inviável, já que não possuo namorado e nem uma casa na praia. A minha incursão na tentativa do coito foi bastante frustrada, como eu já esperava desde o começo da jornada, uma vez que sou bastante ineficiente na arte do flerte, da azaração e da paquera. Destaco as três modalidades de forma genérica, pois acredito que cada uma poste-se como uma atividade completamente apartada da outra. Talvez possamos falar mais disso em outra oportunidade. O caso é que não houve sexo. A tentativa pífia que dispensei se perdeu quando lembrei-me da inaptidão para a coisa — não para o ato em si, mas para o tortuoso caminho até ele. Quando aceitei que não descabelaria o palhaço, decidi descer para a praia. Entrei em contato com duas amigas do peito que já estavam pelas bandas de Caraguá e, bravamente (pelo menos para mim), coloquei uma mochila nas costas (na verdade, era uma de tiracolo) e me enfiei na Rodoviária do Tietê a caminho de descer a Serra, que eu acho que é a do Mar, não tenho certeza.
Quando cheguei à porta da bilheteria, fui informado de que eu só conseguiria um ônibus ao meio dia (eram dez da manhã). Vocês poderiam me perguntar porque é que eu não pesquisei a passagem antes na internet. É que eu tenho dessas coisas: uma preguiça tão inerente em relação à programação e ao planejamento das coisas que, quase sempre, desperdiço metade da vida esperando que essas mesmas coisas adaptem-se ao meu redor. Comprei a passagem e um maço de cigarros, porque o pão de queijo estava caro demais, e fui para o fumódromo da rodoviária que, diga-se de passagem, dá um pau em mais da metade dos fumódromos das baladas de São Paulo.
Já havia terminado o primeiro cigarro quando um senhorzinho começou a fuçar o lixo de bitucas a procura de uma. Achei deselegante com a minha criação não ser gentil e oferecer um cigarro, até porque meu maço ainda continha dezenove unidades deles. Cutuquei o senhorzinho, estiquei o maço e disse: “tome, para a viagem”. Ele abriu um sorriso de dentição perfeita, fazendo inveja à minha arcada dentária que, mesmo tendo se utilizado de cinco anos de aparelho fixo, começava a entortar meu canino novamente e a danificar meu sorriso outrora perfeito. “Vou viajar não, menino” (é engraçado como, de vez em quando, eu ainda inspiro um “menino” nas pessoas ao invés de um “moço”). “Sou Antônio Lisboa Cavacalti”. “Caio Blanco”, respondi. “Blanco, é espanhol?”. “Italiano, mas meu avô foi adotado por espanhóis”. Apertamos as mãos. Ele parece que ficou feliz.
Antônio tinha 74 anos e morava em São Paulo desde os 24. Natural de Recife, da “Viena Brasileira”, como gostou de repetir durante toda a nossa conversa, veio a São Paulo depois de pegar a mulher na cama com outro. “Ela que me trocou e eu que tive de fugir”. Não via os filhos há anos. Os dois viraram advogados. “São doutores, os dois, e eu aqui, vivendo em abrigo”. “Em abrigo?”. “Durmo na rua, mas me recolhem e me levam pro abrigo”. Essas últimas palavras disse com a voz embargada, antes de pegar rapidamente um lenço de linho do bolso e enxugar as grossas lágrimas que já começavam a se formar no canto dos olhos enrugados. “Não trabalha?”. “Recebo aposentadoria, mas não dá pra pagar aluguel”. Contou-me muitas coisas, o Antônio. Que era amigo do pai de Luís Fabiano, o jogador de futebol. Disse que o Luís também não falava com o pai, assim como os filhos de Antônio não falavam com Antônio. Mas Luís tinha motivo, pois tinha sido o seu pai quem havia fugido com uma rapariga e, no caso de Antônio, era Antônio quem tinha sido o traído. Os filhos de Antônio me pareceram injustos e cruéis, mas eu não poderia julgar quem são, pois não conhecia as suas histórias. Não conhecia os netos e disse que, quando foi visitar, nem um copo d’água seus filhos ofereceram a eles. Ele não passou da porta de entrada da casa e viu os sete netos brincando, de longe. Me pareceram muito mais cruéis os filhos de Antônio, mas continuei tentando não tomar partidos. Ao fim da conversa, que levou quase duas horas, mas pareceram vinte minutos, eu entreguei mais dois cigarros a Antônio e disse “boa sorte com tudo”. Ele agradeceu. “Meus filhos e meus netos entrego à Deus. Não desejo mal à ninguém. Faça o bem menino. Faça o bem e não olhe a quem”. Fui embora correndo para o ônibus, atrasado. Também tenho disso: a capacidade de estar sempre adiantado para as coisas e, ao mesmo tempo, sempre atrasado. Esquisito isso.
A história de Antônio me lembrou a história de Regina. Em uma mesma situação, com quatro anos a menos e muito mais pobre, eu estava de madrugada na Victoria Coach Station, em Londres. Uma rodoviária também. Com um nome mais bonito, porém com um chão mais sujo. Eu fazia muito isso durante os tempos em que morei na Inglaterra: passar madrugadas na rodoviária entre uma viagem e outra de ônibus, já que nunca tinha dinheiro para trens. Numa dessas viagens, conheci Regina, uma mulher baixa, gorda, negra, com um turbante na cabeça e muito pouco agradável aos olhos. Tinha acabado de sair da recepção de bilhetes de uma companhia de ônibus qualquer. Tinha perdido o bilhete e disseram a ela que precisaria comprar um novo.
A Regina era originária de Gana, não tinha dinheiro algum no bolso e nem cartão de crédito. Sequer tinha amigos na Europa. Veio me pedir dinheiro para uma passagem. Eu queria ajudar, mas não podia. Não seria justo comigo também, que não comia há mais de sete horas só para economizar as últimas quatro libras que tinha no bolso — para poder comprar cigarros mais tarde. Ali, eu brasileiro e ela de Gana, estávamos empatados: éramos quase nada na noite fria e molhada européia. Ofereci o que, para mim, parecia justo a ambas as situações. Regina não fumava, então dei-lhe um pedaço do meu chocolate meio-amargo e ofereci também uma conversa. De novo, tentando fazer jus à gentileza da minha criação.
Regina odiava Gana. Odiava a África. Isso vinha explícito em todas as suas palavras de rancor, no seu olhar vermelho de sono, no seu sotaque que denunciava seu passado de pobreza e de exclusão. Não lembro muito exatamente de tudo o que conversamos, mas lembro de uma fala: “aqui na Inglaterra é muito melhor, as crianças tem agasalhos. Eu queria que as crianças de Gana pudessem ter roupas”. Tudo o que Regina conhecia do Brasil era o Cristo Redentor. Disse para mim que os brasileiros eram parte de um povo abençoado. Ela era católica e acreditava que Deus estava em todas as coisas.
Quando eu contei que o Brasil havia sido colonizado por portugueses, ela pareceu surpresa e disse que eles também haviam passado por Gana, oportunidade que eu usei para fitar seus olhos tristes e dizer que não éramos, então, nada diferentes. Ela assentiu com a cabeça, feliz. Eu bem sabia que ali, pela primeira vez nos onze anos que Regina morava na Europa, que era a primeira vez que a tratavam como uma igual.
Quando cheguei em Caraguá e desembarcava do ônibus, uma senhora na minha frente se queixava de dor de cabeça. Eu, infalível, sempre ando com Neosaldinas na mala. Ofereci a cartela e também a minha água (a Minalba, para evitar o volume morto). Agradeceu com um sorrisão e disse para Deus me abençoar.
“Faça o bem e não olhe a quem”, porque nós não somos, então, nada diferentes.
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