Borrachinha e os cafonas do Leblon
Eu queria escrever sobre passarinhos e panturrilhas, mas o Brasil me amargura.
Nos últimos anos, me privei de miudezas. Não consigo me conectar. O tempo me amargou, calou meus versos de guardanapo; minhas esquetes de palhaço; dessensibilizou rabiscos rotineiros.
Hoje me equilibro com livros pomposos – que me deixam com um ar meio blasé – e esportes de luta. Com os esportes de luta, acabo me afastando da boêmia. Em uma maldição, me flagro sem saúde para uma vida de boxe, judô e, também, cachaça.
É lutar ou beber.
Por sorte ou consolo, não existe boêmia no adoecido Brasil de 2020. Pelas noites, pipoca gente “cafona” – como diria Fernanda Young em seu último texto –, contaminando ruas e bares. Essa onda não é boêmia. No último final de semana, até rolou aquela baixaria no Leblon. Ontem, a professora da UFRJ, Ivana Bentes, sabiamente comentou em uma rede social, “eu tenho minhas simpatias pelas moças do conversível, que estariam em um filme de Felline, ‘A Doce Vida Pandêmica’”. Bentes concluiu que esse tipo de conteúdo é o bom da internet: não temos nem um Felline e nem um jornalista para mostrar o equívoco que é a nossa elite, a web nos mostra coisas que não poderíamos ver. Ponto para o Twitter.
Com esse último parágrafo que escrevi, veio a certeza: esses tempos amargaram minhas palavras, atitudes e escrita. Uso este espaço colaborativo e criativo – com histórico de lutas urbanas e culturais – para chamar o cidadão de bem de cafona! Meu terapeuta ficaria desapontado. Adoraria escrever sobre panturrilhas ou passarinhos, mas as ideias de Jessé Souza me amaldiçoaram e hoje minhas palavras, muitas vezes, se voltam para a elite do atraso.
No domingo mesmo: li um livro do criador do judô, sensei Jigoro Kano, onde ele fala que devemos buscar sempre a “máxima eficiência”. Não apenas em lutas, mas em nossa ética. Kano explica que quando você sente raiva, ocorre um desperdício de energia. Quando você sente preocupação, também. Por isso entendo o motivo de não conseguir mais captar as belezas da vida. Entendo que estou com menos energia para me sintonizar com as miudezas, com o sensível.
Ao mesmo tempo que ler a obra de Jigoro Kano me traz algum equilibro, me lembro do Paulo Borrachinha.
Puta merda!
Paulo Borrachinha é um lutado do UFC que disputou cinturão no último final de semana. Gado fervoroso. Que ao disputar o cinturão se apresentou usando uma faixa preta e jogou uma faixa branca em seu adversário, o nigeriano Israel Adesanya.
Pois bem: como estudante do judô, entendo que qualquer artista marcial deve seguir o bushido, que é o código de conduta dos samurais, literalmente “o código do guerreiro”. Respeitar o adversário independente da graduação é o básico. No judô, se o colega de treino ou competição possui uma faixa vermelha ou coral (graduação maior que a preta), geralmente ele vai treinar ou lutar com a preta, por ser uma atitude polida – todo mundo já sabe que o cara é super-graduado, não precisa ostentar. Nesta lógica, uma pessoa mais graduada jogar uma faixa branca em alguém é uma desonra sem fim. Entendo que nem o mundo do UFC e nem do jiu-jítsu brasileiro são como o do judô, mas um artista marcial é sempre um artista marcial.
Já em um ponto de vista além do bushido, a atitude de Borrachinha também foi um horror. Com muitos signos que vão além de questões samurais, por exemplo: um homem branco “carteirando” um homem negro é a reprodução de gestos centenários que fizeram nosso país chegar nos problemas sociais que chegou. E ainda tem gente que chama Paulo Borrachinha de patriota. Borrachinha e os cafonas do Leblon são a personificação das correntes da nossa colonização. São aquilo que nos prende da forma mais efetiva do que qualquer exército estadunidense ou europeu.
Felizmente, o nigeriano nocauteou o patriota no segundo round. Segue campeão.
Hoje de noite, vou assistir algum filme de Federico Felline. Tentar me sensibilizar. Mas agora também entendo que Felline vivia “pistola” com sua sociedade. Depois que você entende que algo pode ser arte e também denúncia, é um caminho sem volta.
Obs: ao comentar a fala da professora Ivana Bentes nas redes sociais, uma amiga ponderou sobre uma suposta romantização do horror que é a cena das mulheres no carro no Leblon. Reli o texto, revi o histórico de posicionamentos da professora e também perguntei para outras amigas feministas. Sigo entendendo que essa comparação com o Felline é uma ironia extrema e me parece claro que todos os personagens desse filme são equivocados.
Como na pós-modernidade não existe resposta certa e não conflituosa, futuramente posso mudar de opinião.
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