Gol a gol
Meninos passarinhos na gaiola lúdica.
Em mais um arranha-céu, no alto da torre. Corretores diriam tratar-se de um “empreendimento”. Da varanda do quarto de dormir, situada no nono andar do edifício, a uma distância considerável da terra, suficiente para amedrontar em um dia de pré-disposição a pensamentos mórbidos, eu avisto dois meninos jogando futebol.
Eles estão no prédio vizinho, na área comum dos habitantes, nivelados pelo chão, andar térreo do terreno. Um modelo de quadra dessas que lembram gaiolas, cercada e coberta por redes e grades. Há também holofotes, para os moradores usufruírem do espaço quando noite.
O ângulo soberbo ao qual meu olhar tem acesso, traz a perspectiva de que até a quadra foi projetada com a cautela que se faz imprescindível para um bom condomínio, em segurança. Proteção é ilusão, mas conforta e valoriza. As verticalizações isolam andares de pessoas, que não temem as alturas. Correntes de aço as separam do subterrâneo, deslizando sem parar nas viagens de ida e volta, como que reforçando a proximidade entre ambos.
Desta distância, consigo ludibriar os olhos e imaginar meninos passarinhos, em liberdade condicional, transitando no território restrito, parece que eles respeitam uma escritura. Garotos passarinhos em gaiola de concreto, lembrarão nostálgicos de suas infâncias, dessa liberdade, penso eu. Nós adultos vivemos encarcerados, é como se cada escolha fosse uma gaiola e as nossas asas a renúncia.
Observo os meninos de cima para baixo e de trás para frente, sou eu criança quem os mira, a minha vontade é de ir até eles e solicitar, se assim lhes for de comum acordo: “vai a quanto, posso ser próximo?”, ocultando o artigo “o”. Artigo, bola, me dá igual! Agora eu era eu e quero simplificar, chutar as circunferências. Em uma partida de futebol disputada por crianças, há a maior concentração de pureza por metro quadrado.
Eu vejo esses meninos e é inevitável não fazer uma auto-regressão. Busco sentir o que sentem, no momento, enquanto os fito, talvez eu esteja batendo bola mais do que eles.
Cada qual na extremidade que lhe cabe da quadra, fazendo guarda, por sua vez, a meta que lhe pertence. É fogo cruzado, disparam em direção a rede oposta com o intuito de sacudi-la, e assim somar seus tentos. A contabilidade é feita de cabeça, a base de gritos, esses que sucedem os gols, prolongando a euforia, reivindicando a atualização do placar agregado.
Eu era um pouco deles e eles eram um pouco de mim, porque eu ainda sou o que fui. Os meninos recebem a esfera e dominam o mundo, materializando, naquele lúdico espaço, seus desejos mais oníricos. E após o domínio, como em um passo ensaiado anterior ao nascimento, projetam o corpo para fuzilar com um dos pés a pelota, o artigo, ou o globo, simplesmente, concentrando sua energia no contra-ataque ao adversário. Será que eles imaginam, quantas vezes ao longo de suas vidas, eles ainda irão repetir tal combinação de movimentos?
Cheguei a tomar um pouco de coragem, mas não desci: 9 andares ou 20 anos? Talvez meu medo maior tenha sido perder essa partida…
Os garotos, por sua vez, ficaram exaustos, pois não havia próximo e ininterruptamente faziam investidas um contra o outro, gol a gol, de modo que as pernas pesaram.
Eles se sentaram na quadra, alheios, e um deles repousou as panturrilhas sobre a bola, com as pernas em riste, ambas as mãos apoiadas sobre o chão e os ombros voltados para trás. Já era fim de tarde. Fim de jogo. Início de duas vidas além das quatro linhas.
Do alto, fui atingido por um frio sopro de vento vespertino, ao contrário dos meninos, suponho, pois estão rodeados por prédios por todos os lados, engolidos.
Eu que não revivi, afinal, rememoro e retomo a realidade adúltera, quando todos os sonhos se tornam esperanças perdidas.
Ilustração de Thiago Lopes, do estúdio Kiwi.
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