Revoluções profundas e jogatinas indecisas
Um história sobre astrologia e eu odeio astrologia.
Era uma tarde de sábado regada a uma ressaca maldita quando eu me dei conta de que não sabia o meu ascendente. Isso, o ascendente astrológico. Astrologia era uma daquelas coisas que nunca fizeram muito sentido para mim. Eu nasci em novembro e carreguei, durante toda a vida, a alcunha do escorpiano. Ouvi coisas maravilhosas sobre os escorpianos, todas coisas que eu almejava ser: misterioso, apaixonado, ciumento, vingativo e bom de cama. Nunca me identifiquei muito com nenhuma das descrições. Todas elas esbarravam em um sujeito que parecia ser muito mais interessante do que eu jamais fui. Eu era aquele garoto mais ou menos misterioso, mais ou menos apaixonado, mais ou menos ciumento, mais ou menos vingativo e mais ou menos bom de cama. Naquela então tarde de sábado, estava posicionado em frente a dois amigos em um apartamento no Higienópolis tentando me recuperar de uma noitada regada a gim tônica. Minha cabeça ainda pendia para a esquerda, quando um amigo começou a contar como o avô dele era ligado nessa história de astrologia e conseguia desvendar entruncados mapas astrais das vidas das pessoas. Perguntaram o meu ascendente. Gelei. Vinte e quatro anos, à época, e eu nunca tinha me dado o trabalho de descobrir o meu signo ascendente. “Precisa saber que horas você nasceu”, me disseram. Fedeu: eu não tinha certeza nem da data do meu nascimento (sempre desconfiei, lá no fundo, de que eu era adotado e de que haviam inventado uma data de aniversário fictícia para mim, uma dessas coisas que os irmãos mais velhos incutem na sua cabeça como brincadeira e acabam virando traumas bem profundos que mascaramos com humor, ou com crônicas).
Não duvidei: passei a mão no meu celular e liguei para a minha mãe, mas ela nunca atende o celular. Liguei para o meu pai. “Babo, deixa eu falar com a mama, por favor”. O barulho da festa ao fundo em que eles se encontravam era quase ensurdecedor e, conhecendo meus pais como bem conheço, já tinha certeza de que minha mãe atenderia o telefone com a voz risonha por conta do copo de whisky com gelo e um pouco de guaraná que ela provavelmente deveria estar carregando na mão. “Mama, que horas eu nasci?”. Dessa vez, ela quem gelou. Depois de um silêncio ligeiramente desconfortável em que ela envergonhava-se de não saber o horário do meu nascimento e eu fingia que não me incomodava com o fato, ela decidiu pedir arrego. Gritou ao meu pai — “Bã, que horas o Caio nasceu?”. Meu pai gritou de volta. “Xi, sei lá eu”. Meu pai não parecia nenhum pouco envergonhado de não saber o hoário que minha mãe me deu a luz. Ele sempre foi do tipo direto, meu pai. Escorpiano também. “Eu não lembro muito bem de vocês crescendo, quem era quem, qual peça de teatro era de quem, qual jogo de futebol, competição de judô cada um estava. Eu fui criando”, ele repetia sempre em relação a minha criação e a de meus dois irmãos mais velhos. Meu pai parecia sim ser bastante escorpiano. Fiquei tentando imaginar qual seria o ascendente dele. Certamente, ele não fazia a menor ideia. Minha mãe voltou para a linha. “Onze. você nasceu às onze da noite”. Ela obviamente acabara de inventar o horário. “Mama, você tem certeza?”. “Tenho, tenho sim. Foi às onze”. Aceitei. Achei melhor não discutir com a minha mãe bêbada.
Rodei o mapa astral online enquanto meus amigos, ansiosos, esperavam o resultado. Coloquei o horário indicado pela matriarca alcoolizada e dei enter. Já estava ali definido o meu destino astrológico: escorpiano, ascendente em Aquário, “Caio, o revolucionário”. Vibrava a cada linha de descrição do meu novo ascendente e me esforçava a cada vírgula para acreditar que aquela sim era a minha mais intrínseca personalidade. “Esse sou eu, finalmente! Escorpiano que nada, sempre fui é um baita de um aquariano”. Meus amigos assentiam com a cabeça, concordando também com todos os adjetivos da descrição. Que sensação maravilhosa era ser, finalmente, descrito e posto no papel. Não mais surpresas não, senhor; eu era Caio, o revolucionário, e o mundo estava em seu perfeito lugar e as coisas começavam a fazer sentido.
Fui para a casa me sentindo muito bem e desfrutei por mais algumas semanas da minha nova personalidade charmosa: inquieto, questionador, nutrindo um desprezo pelas regras e pelo real, me apegando naquilo que era sonho e fantasia. Era bom demais ser assim, tão revolucionário. Comecei a fumar logo de manhã, hábito que sempre evitei. Mas é que era eu agora um transgressor e a isso não poderia ficar alheio. Comecei também a demonstrar desprezo pelo trabalho e a criar ferozmente o que eu acreditei ser o suprassumo de toda a minha atividade artística. Engatei noitadas homéricas, voltei a fazer amizades com desconhecidos na noite, comia livros como um poeta tuberculoso. O mundo era meu, o mundo era dos aquarianos, esses revolucionários maluquinhos.
Alguns meses depois, estava sozinho em meu antigo apartamento fumando um cigarro noturno quando me deu aquela súbita vontade de lembrar quem eu era. Fiquei com saudades das palavras tão ternas que o site de astrologia tinha para dizer a meu respeito e resolvi que queria ler novamente a descrição do Caio revolucionário. Eu tenho desses momentos, em que gosto de reinflar o ego para ver se alimento minha paz de espírito. Refiz todo o processo do site, recoloquei meu horário de nascimento e pimba, eis que a vida me passou uma rasteira. Eu já não era mais “Caio, o revolucionário”. Passei a ser escorpiano com ascendente em Câncer, “Caio, o reino das emoções profundas”. Desacreditei. Que diabo de ascendente é esse que muda de mês em mês? Esbravejei sobre a idoneidade do site e estava preparado para escrever um e-mail bem mal-educado ao senhor astrólogo dono do portal. É que a descrição do meu novo ascendente era uma imensa babaquice sobre sentimentos profundos, o sentir, a angústia das coisas da alma. Era piegas. Não que eu não dê sentido a esse reino das emoções profundas, veja bem: escrevi um livro inteiro apenas para expurgar as mágoas de um namoro malfadado, mas pô, eu era o revolucionário. Aquele garoto que ia mudar o mundo e que, agora, tinha vocação para ficar choramingando pelo canto sentindo demais tudo o que a maioria tende a ignorar. Não aceitei. Refiz o prognóstico apenas para confirmar o diagnóstico: ascendente em câncer mais uma vez.
Enfureci-me. Passei a mão no telefone e liguei para minha mãe. Ela nunca atende o celular. Liguei para o meu pai. “Babo, preciso falar com a mama. É urgente!”. Estavam em casa, ainda bem. Nada de festas, nada de whisky. “Mama, preciso saber que horas nasci, mas preciso disso certeiro”. “Foi às onze”, ela arriscou triunfante, querendo dar razão à sua mentira precedente. “Não, nada disso, pega a certidão de nascimento, preciso disso certeiro, mama, já disse. É a diferença entre ser revolucionário e um babacóide sentimental”. Ela sequer tentou entender o dilema. Aliás, minha mãe deixou de tentar me entender quando aos sete anos pedi uma máquina de fazer sorvete da Eliana sob o argumento de que era um brinquedo unisex e de que, portanto, não havia problema em eu, um menino, ser proprietário de uma delas. Ela voltou com a certidão ao telefone. Envergonhada, disse algo inaudível. “O que, mama? Não entendi.”. “Nove e oito”, ela disse cabisbaixa, eu sei. “Você nasceu às nove e oito da noite”. Não perdi tempo em dar um sermão em minha mãe por ela ser assim tão desapegada ao horário do meu nascimento. Talvez devesse conversar sobre o whisky e as noitadas com meu pai, mas também achei irrelevante naquele momento. Desliguei o telefone quase que prontamente e meti-me nos meandros do site astrológico mais uma vez. Digita, digita, data de nascimento, clica, clica, horas, enter!
Um mundo novo. Completamente novo. Eu não era nem mais revolucionário e nem mais nadava nas piscinas dos sentimentos profundos. Eu era escorpiano com ascendente em Gêmeos: “Caio, o jogador”. O jogador? O jogador. Eu era o jogador. Eu nem conseguia entender o que isso significava. Em alguns meses eu tinha passado por três personalidades completamente diferentes. Eu mesmo não mais sabia quem eu era, estava completamente confuso, odiava astrologia. Realmente odiava astrologia. O novo Caio, aparentemente, era calculista, frio e determinado. Mestre na arte da manipulação e dos jogos sociais, capaz de quase tudo para chegar onde gostaria de chegar. Tentei extrair qualquer coisa de positiva sobre isso, pensando que finalmente eu poderia começar a me dar bem no trabalho com o novo comportamento calculista. Acontece que o desprezo pelas minhas tarefas profissionais, que foi resultado do mês em que fui um aquariano apaixonado e revolucionário, acumularam trabalhos hercúleos e eu daria sorte se conseguisse fechar todos os meus prazos e as minhas metas com o mínimo de louvor. Estanquei na produção artística mequetrefe e comecei a fumar ainda mais desesperadamente por não saber quem eu era. Que agonia era a astrologia.
Tentei lutar contra meu ascendente. Estava tão determinado em ser aquariano, em ser revolucionário, que custava a aceitar que eu era, em realidade, um jogador. Papeei um pouco com esse meu amigo cujo avô é o mestre da astrologia e ele me disse que não tem jeito mesmo: que eu sou o jogador e vou ser pra sempre o jogador. Que ascendente não expira. Pensei que talvez o médico pudesse ter errado o horário do nascimento, a enfermeira feito a anotação errada, não sei. Jamais saberei. Não consigo ser transgressor para ignorar meu ascendente e dizer que sou revolucionário e aquariano. Se eu fosse de fato aquariano e revolucionário, quem sabe fosse menos desprendido e diria por aí que sou quem quero ser. Mas não. Eu não sou revolucionário.
Agora quando me perguntam o ascendente, digo que não sei. Que não me agrada essa história de astrologia e que eu bem sei que tudo isso é uma grande bobagem. Finjo isso para não ter que entrar no assunto e lembrar que odeio meu ascendente. Faço isso porque sou jogador. Sou jogador porque meu ascendente é gêmeos. Nem sei mais se acredito nessa história de ascedente. Li esses dias que geminianos são confusos e indecisos. Não sei se acredito. Não sei.
Eu odeio astrologia.
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