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Fragmentos e spam

por Adolfo Caboclo, 19 de outubro de 2020
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Ando estudando fragmentos; entulhos; objetos de caçamba. Talvez por ter passado muito tempo em frangalhos, me incomodo com a demolição das coisas da cidade. Projeção.

Ando tentando entender o motivo do tecido urbano de São Paulo sempre se esfarelar. Passam o tempo todo derrubando construções novas e, sobre elas, sobem prédios mais novos ainda.

Em busca de respostas, pesquisei alguns autores. Gostei de algumas ideias do espanhol Manuel Castells, que fala que um “espaço é um acúmulo de tempos”. Percebo que o imóvel de onde escrevo já foi terra e também já foi mato, oca, sobrado e hoje é o apartamento em que vivo. Foi alguns outros apartamentos, completamente diferentes nas mãos de seus antigos proprietários, mesmo sendo o mesmo apartamento, o mesmo espaço, era um “acúmulo de tempos” diferente.

Na geografia, flerto com Milton Santos. Ele fala em “técnicas” – interferências do homem na natureza. Com elas, o mato vira terreno; o barro vira vaso e a madeira vira mesa. Milton diz que quando se aplica uma técnica, estamos construindo histórias e também estamos buscando espaço. Espaço para plantar, morar, colocar flores ou comida. O filósofo chinês Lao Zi diz: “a argila foi feita para modelar vasos, mas o espaço contido é o que é útil. A matéria, portanto, é apenas útil para marcar os limites do espaço, que é o que realmente tem valor”.

Pensando em espaço, também comecei a ler o livro Arte Duty Free, da artista e ensaísta Hito Steyerl. A obra possui ponderações que vão muito além da questão apontada no título, da arte sem impostos, comercializada em portos livres. Também fala, por exemplo, dos “entulhos” que vão além dos fragmentos da cidade: os fragmentos virtuais – escombros na internet.

Quando o mundo virtual se fragmenta e é reconstruído o tempo todo – assim como a cidade de São Paulo –, quando sonhamos nossas singularidades tecnológicas, transformamos de uma vez por todas a humanidade em algo supérfluo, criando pequenas realidades onde se pode contar a própria história: cheia de religião, ideias totalitárias, terraplanismo e mitos. A demolição das construções contemporâneas vai além da cidade, edifícios e áreas urbanas: ela se refere a destruição do entendimento comum e sua substituição por histórias artificiais, superficiais e obscurantistas.

No livro também aprendi que a palavra “spam” surgiu nos anos de 1970. Era o nome da carne de porco enlatada (spice ham), de baixíssima qualidade. Ela possuía uma origem duvidosa e foi muito usada para alimentar militares de baixa patente. No final do milênio, com a chegada do e-mail, os fragmentos de informação online – impostos, que já vem prontos e de procedência duvidosa – que chegavam nas “caixas de entrada” ganharam o mesmo nome desse alimento enlatado: “spam”.

Quando descobri isso, também estava estudando as relações que o artista Roberth Smithson fez do metal – a superfície metálica –, com a modernidade (e indiretamente com caçambas de entulho, fragmentos e tantas outras coisas) e na hora fiz a fotografia abaixo, que dei o nome de “Verdade em lata – te sustenta todo dia”. Ao mostrar a imagem para algumas pessoas, alguns colegas não a viram como poética, escutei: “nossa Caboclo, você não está se alimentando direito”. Pronto. Acabava de me tornar o artista contemporâneo inacessível que tanto critiquei em outros textos.

Adolfo Caboclo | Não Só o Gato Verdade em lata – te sustenta todo dia (Adolfo Caboclo, 2020)

Adolfo Caboclo

Artista e pugilista. @adolfinhocaboclo

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