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Mostra Internacional de Cinema, política e indisposição estomacal por conta do volume morto

Uma jornada onde a Mostra foi explorada em tempos de política à flor da pele

por Caio Blanco, 5 de novembro de 2014
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Quando chegou a época da estreia da Mostra Internacional de Cinema (a trigésima oitava) aqui em São Paulo, eu tracei o plano, quase infalível, de assistir a dois filmes por dia: sempre um gratuito no vão do MASP e outro meio-pago — porque minha carteirinha ainda diz que sou estudante — em qualquer um dos cinemas da região da Paulista. Isso me daria uma média de dez filmes no período de segunda a sexta e eu já estaria feliz, muito bem, obrigado, em poder completar essa simples tarefa. É que me coloquei de meta completar as coisas, principalmente as que mais gosto de fazer. Para alguns uma atividade de cunho mais do que comum; para mim era a necessidade de provar a mim mesmo (e à minha dislexia) que eu era capaz de começar e terminar coisas sem interrupção. Veja, estou tentando construir foco.

Pois bem. Comecei segunda-feira com pique de atleta, escapulindo do trabalho em uma manobra de mestre ninja às exatas seis horas da tarde. O início da Mostra coincidia, então, com uma onda de ar gelado aqui pela terra da garoa, que fez honra ao nome e despencou as temperaturas e deixou cair uma chuva fina, de arrepiar o couro cabeludo e uma boa parte dos ossos. O tipo de chuva que mais odeio: a meia-chuva. Ou chove ou não chove. Chover mais ou menos, não. Eu estava mesmo afixionado com o projeto de não deixar nada pela metade.

Depois de encontrar dois companheiros aqui do Gato, comecei no vão do MASP com Rio Corrente, do estreante e ex-montador Paulo Sacramento. Assistimos juntos um emaranhado de cenas-maçaneta com a cidade servindo de trilha sonora para os ouvidos e de fundo de tela para o canto dos olhos. Os sons e batidas da São Paulo do filme misturavam-se aos berros dos mendigos da São Paulo ao nosso lado, escancarada. Não havia paredes para separar a magia da ficção do duro da realidade. Pena ser o filme também assim tão duro. A linha narrativa tratava de tentar construir relação entre os três personagens principais, que participavam de um triângulo amoroso que, de tão complexo, pareceu-me extremamente simples e sem-graça. Sua metáfora central — do velho contra o novo — não conseguiu estabelecer-se durante a narrativa, que parecia superficial e recheada dos maneirismos dos filmes paulistas. Foi uma história que me atingiu muito pouco. Pelo menos muito menos do que os barulhos e o vento frio que cortavam o vão do MASP.

Saí, então, pouco impressionado do cinema ao ar livre para um Reserva Cultural quentinho e com um café quente me esperando, não sem antes parar no meio da Paulista chuvosa para cumprimentar um amigo do companheiro aqui do Gato. São Paulo tem dessas pequenezas, de se encontrar gente conhecida no meio do desconhecido.

Durante o meio tempo depois que comecei a seguir minha trilha da Mostra, desacompanhado agora, recebi a ligação de um amigo: “a Dilma tá na PUC, vamos?”. Eu, que tornei-me militante petista de carteirinha no Facebook, fiquei tentado, mas declinei: a chuva era aquela, da metade e que eu odeio, e eu não tinha forças para encarar transporte público até Perdizes. Desviei o caminho para o Shopping Frei Caneca, e fui para a segunda sessão do dia e do projeto: A Pequena Morte, comédia australiana do ator Josh Lawson que aqui assina roteiro e direção. No fim, o amigo que havia me convidado pro comício da Dilma juntou-se a mim para a sessão. Ele e a esposa deleitaram-se, assim como eu, com uma comédia bem estruturada e cheia de situações que, de tão absurdas, pareciam tão completamente reais. O filme contava a história de diversos casais e sua relação com o sexo. Eu, que passei boa parte da pré e da adolescência completamente assexuado, encontrei guarida às minhas risadas em um ambiente seguro: cinema cheio e completamente confortável em gargalhar sobre as diversas manias — e maneirismos — do mundo da transa.

Estava, então, empatado em um a um: um filme ruim e um filme bom. Ainda havia muito jogo para o desempate. Na terça, meu plano começou a ir para as patavinas, quando pulei a sessão do MASP para não assistir novamente a Trilogia das Cores, que iria se estender até quinta-feira. Pulado o vão, fui diretamente para o Reserva, mais uma vez, assistir ao Encontros Com Um Jovem Poeta, de Rudy Barichello. Bom filme. 2×1 para o time dos bons.

Na quarta, eu fui completamente acometido por fortes dores de cabeça e uma náusea sem fim, estado deplorável que iria persistir por uma semana, me impedindo de continuar na esteira desenfreada de filmes. Diabos, meu plano ruíra. Não saberia dizer a origem da indisposição. Diria que era o estresse das eleições, o medo das ações reacionárias que noventa por cento dos meus amigos — que eu achava que conhecia tão bem — começaram a demonstrar às vésperas da votação. Depois, lendo um pouco mais, descobri que poderia ser coisa do volume morto da Cantareira. Beber aquela água, mesmo que do filtro, poderia trazer consequências nefastas a médio/longo prazo. Decidi começar a beber apenas água engarrafada. Virei prisioneiro da Minalba e da ansiedade eleitoral. A Mostra havia, então, ficado em segundo plano, junto com as minhas andanças pelos cinemas paulistanos. Durante o estado morimbundo, dei ainda cabo de sofrer de amor, encabeçar uma crise profissional e dar uma festa em casa. Tudo acompanhando da dor de cabeça indecifrável que me fez acabar com o projeto da Mostra.

No sábado, reergui-me: sessão das onze, fui assistir As Pontes de Sarajevo, um apanhado de curtas de diretores diversos sobre a cidade de Saravejo e o que ela representou durante cem anos de história européia. Dormi em pelo menos três curtas e saí do filme com mais dor de cabeça do que entrei. Era o fim, 2×2 parecia ser o placar final: dois filmes ruins e dois bons. Nem perto dos pelo menos dez que queria ver. Lembrei das parciais da eleições e de mais um projeto que não terminaria; o estômago embrulhou ainda mais.

No domingo, a declaração dos resultados fez questão de levar embora o desconforto estomacal. A dor de cabeça permanecia. Não havia dúvidas que era o volume morto. Quando as esperanças de tentar sair do projeto da Mostra com o mínimo de dignidade pareciam todas sucateadas, a Maju — menina bacana que mora comigo — me convidou para uma sessão de Mateo na terça. Enchi-me de coragem e fui. O filme de Maria Gamboa era uma ficcão que contava a realidade de comunidades colombianas que sofrem com as consequências do poder para-estatal. O Mateo do filme é um garoto envolvido com uma gangue local que acaba encontrando salvação através do teatro. Eu não sei se gostei mesmo do filme recheado de clichês ou se me forcei a gostar apenas para dar um fechamento benéfico ao projeto malfadado. Decidi, era bom! 3×2 e ganhamos.

Respirei, ao final daquela semana gelada e cinzenta, aliviado pelas duas vitórias (a das eleições e a dos filmes decentes). A dor de cabeça apertou um pouco quando reparei que havia assistido cinco filmes. Exatamente metade do que havia me disposto. No fim, acabei dando mérito à incompletude das coisas as quais me proponho a tentar terminar. Mais duas vitórias: a da dislexia e a do volume morto, que me deixou com dor de cabeça por mais quatro dias. Estava dois a dois de novo. Respirei (fundo, dessa vez) e aceitei. Às vezes, na vida, temos que ceder: se é de uma intrínseca natureza que eu viva pela metade — e sempre no meio –, melhor tirar proveito. Abri mais uma Minalba e fui ler os comentários no Facebook sobre o impeachment da presidente. O mundo estava nos conformes.

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Caio Blanco

Caio Blanco, 24 quase 25, só sabe existir em crise. Tem asma, mas fuma. Pouco, mas fuma.

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