O chão é o graffiti
Estudei num daqueles colégios religiosos. Daqueles que crianças não podem usar bermuda e meninos não podem usar cabelo comprido. Esporadicamente, ia um policial na sala de aula ostentar uma arma enquanto dava uma palestra que traduzia um “diga não às drogas”. Como a maioria dos ambientes repressores que conheci, por lá presenciei atividades transgressoras proporcionalmente inversas a tal tirania. Nessa época contemplei espancamentos em banheiros de pomposos aniversários de debutantes — a violência verbal que absorvi nas salas de aula não foi menor —, presenciei alguns pequenos furtos e aprendi tudo sobre as regras da pichação. Sim, o meu puritano colégio era o berço de inúmeros pichadores da região. Era, mais especificamente, um aglomerado de quem faz “tag“, que é uma marcação de giz de cera com algumas letras do nome do autor.
As leis que regem o mundo das tags e do picho eram muitas e o desrespeito com qualquer uma delas era um bom motivo pro pau comer solto, mas em um simples resumo para leigos, que chega aonde quero chegar, é: quem fizesse a sua marca no lugar mais alto, era o transgressor mais prestigiado.
Enfim, de lá pra cá se passou uma década e o meu mundo deu algumas voltas, mas não perdi o hábito de observar paredes. Independente do lugar do globo que estive e do tipo de signo que eu contemplasse grafado nas paredes, entendi que se a lata cospe tinta é para as alturas. Raras eram as exceções onde vi algo grafado no chão — como, por exemplo, na arte do grafiteiro TEC, que é muito presente na zona oeste paulistana, ou então em alguns trabalhos da dupla 6emeia.
Então mês passado, quando conheci a cidade de Porto Alegre, me encantei com sua robusta cena de arte urbana. Aos meus olhos, a cidade se mostrou com muito mais graffiti do que em outras cidades que conheci — como, por exemplo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Madrid e até mesmo Paris. Mas o que realmente me levou a escrever esse texto foi a presença de arte urbana no chão, não como uma exceção, ou algo diferente, mas como uma constante, uma característica marcante do seu principal bairro boêmio, a Cidade Baixa.
Depois pesquisei e descobri que essa “tinta no chão” que chamou a minha atenção foi obra de um coletivo de artistas chamado de Núcleo Urbenóide, que em dezembro do ano passado, em parceria com a associação do bairro e algumas outras frentes da região, se uniu para viabilizar a pintura das bocas de lobo e bueiros da região e assim, revigorar essa áurea cool do bairro.
Acho legal, não só pela organização a favor da arte ou pela arte em si, mas pelo entendimento de que tudo pode ser uma plataforma artística. No momento que existe um entendimento que a arte tem que existir, independente da “nobreza” do lugar que ela é aplicada, a obra ganha vida própria e fica mais livre do ego do seu próprio criador. Se eu pensar naquelas obras milenares egípcias onde a imagem do faraó é tão maior que a das outras pessoas representadas, ou mesmo nas propagandas com que trabalhei (pra quem não sabe, sou publicitário) onde existem milhares de leis de “hierarquização” da informação, acho bonito saber que nos anos 10 do terceiro milênio do calendário cristão, existe, por exemplo, um Banksy, que fala tanto para os seus apreciadores, sem se quer aparecer e com obras relativamente pequenas e em lugares “não nobres”, ou mesmo aqui no Brasil, em POA, onde existe um movimento na Cidade Baixa, um coletivo, que cria arte independente do lugar e essa arte se torna parte do próprio ambiente. Pra estes, aqui estão as minhas palmas.
Afinal de contas, a arte não é ego, ela chega a ser mais que vida. Como diria Ferreira Gullar, “a arte existe, porque a vida, por si só, não é o suficiente”.
Fotos por Adolfo Martins
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