A reflexão sobre o espaço público em Planta
Histórias são contadas todos os dias, por todo o tempo, desde que a raça humana prestigiou o seu primeiro alvorecer. A saga de seres criadores, governantes, palhaços, caras comuns, amantes, heróis, foras-da-lei, inventores, inocentes, exploradores e sábios sempre saracotearam pelos mais variados cenários e tipos de linguagem, brincando com os sentidos de seus receptores. No emaranhado dessas infinitas histórias é natural ficarmos acostumados e viciados em apenas alguns tipos. É comum colocarmos nossos personagens em apenas um limitado número de espaços ou em determinado livro, religião, marca, tela de Ipad e onde mais formos adestrados a compor e a absorver narrativas.
No caso do teatro, não é diferente.
E é justamente sobre a experiência de uma narrativa que não se limitou ao cenário comum que eu quero falar. Essa ocorreu quando assisti à peça Planta, que integrou a X Bienal de Arquitetura de São Paulo, exatamente no final de semana que um amigo carioca acabara de se mudar para a cidade. Na ocasião, achei que seria uma imersão interessante leva-lo para um espetáculo que prometia sair, de noite, da estação de metrô Marechal Deodoro, centrão da cidade, e que posteriormente guiaria os espectadores até o Elevado Costa e Silva, vulgo Minhocão. Foi exatamente isso que aconteceu.
Logo quando cheguei na entrada principal do metrô, no horário combinado, encontrei uma dupla trajando panos e folhas, ostentando uma placa com o nome do espetáculo. Foi lá que, junto com meu amigo e outras dezenas de pessoas que foram se aglomerando ao redor, fui guiado até o, quase que vazio, Minhocão. Em determinado momento do percurso os atores pararam e nos indicaram com suas “coreografias excêntricas” aonde seria a peça e foi essa a grande sacada do projeto Planta: enquanto os espectadores ficavam na rua, os atores atuavam em um apartamento antigo, em janelas que ficam a menos de cinco metros do asfalto.
O que acontecia no momento do espetáculo era, antes de tudo, poético. Jovens, casais, senhores, todos explorando uma área estranha aos transeuntes. De dia, aquele local é um pandemônio de carros que não andam, mas de noite o espaço torna-se uma área para a população transitar onde a grande maioria não transita. Um local de arquitetura feia, escura, mal conservada, mas ainda sim, habitado. As janelas do apartamento que era palco brilhavam junto com seus atores. Cada um criava uma pequena história muda em seu espaço, enquanto outros cômodos do andar eram tomados por projeções com reflexões em frases e vídeos. Meus olhos se perdiam diante de tantas coisas acontecendo simultaneamente. Não só no palco, mas também no olhar curioso do menininho na janela vizinha e com o susto do sexagenário corredor que se exercitava enquanto percebia que estava entre uma plateia e um espetáculo.
Prestigiei, ao lado de umas trinta pessoas, um espetáculo “amarrado”, com um ritmo fortíssimo e atores que eram conscientes de cada centímetro do espaço que atuavam. Como já disse no começo deste texto, trata-se de uma narrativa cheia de frescor, que com palavras, certamente, eu não poderia descrever com exatidão. Porém, se não posso descrever a minha sensação perante essa vivência tão enérgica, pude pelo menos ir atrás de um dos responsáveis pelo Planta. No caso, bati um papo com um dos diretores da peça, o João Dias Turchi.
Encontrei o João dois dias depois de prestigiar o Planta, em um bar nos arredores da República. Com uma cerveja, dois copos e um gravador entre nós, ele me contou a sua história de imersão no tablado. A jornada de um jovem que saiu de Goiânia almejando ser doutor pelo Largo São Francisco e em seu terceiro ano de estudo entrou em um núcleo de dramaturgia onde teve a oportunidade, no ano passado, de ter uma peça de sua autoria em cartaz por três meses no prédio da Fiesp, na Av. Paulista. Desde então sua vida não parou — ele também participou do Satyrianas deste ano e está com mais três projetos para os próximos meses.
“O apartamento onde acontece o Planta é, na verdade, a Associação do Parque do Minhocão, que tem como objetivo transformar o Minhocão em um parque. No momento, a casa está abrigando uma exposição sobre o Highline de Nova Iorque. Antes da exposição abrir, eu fui lá e falei ‘aqui é um palco perfeito para fazermos uma peça aqui dentro, para ser vista lá de fora'”, comentou João sobre o momento em que surgiu a ideia de fazer o projeto que rolou em parceria — na direção e nos textos — de Gustavo Colombini. “Queria ver quanto da cidade que cabe em você e quanto de você cabe na cidade”, concluiu.
No momento que ficou decidido que eles iriam tratar sobre a relação das pessoas com o espaço público e toda a invasão que a cidade faz na vida de seus próprios moradores, e que também conseguiram a liberação do espaço para a realização do espetáculo, lhes restou um mês para a preparação de Planta. Foi um período em que todos os participantes da peça fizeram um exercício de chegar no apartamento, usá-lo e “desconstruí-lo”, para no final da noite arrumar tudo e deixar exatamente como ele estava. Esse exercício objetivou o entendimento sobre a relação tão “passageira” das pessoas com aquela região da cidade.
Depois desse trabalho, reflexões interessantíssimas surgiram. João comentou: “eu tenho uma teoria que em São Paulo existe um constrangimento do espaço público, muito mais que qualquer outra cidade. Mesmo Londres que é uma cidade toda regrada, quando você está no espaço público, você sabe que tem os seus limites, que não pode ficar bêbado, que pode ser preso, mas você sabe que se estiver em um espaço público, ninguém vai te coagir a sair dele. Mas em São Paulo, faça uma experiência de elaborar uma peça em uma praça: alguma autoridade vai vir conversar com você, na hora, apenas por estar fazendo alguma coisa que sai do normal daquele espaço. Mesmo meu prédio, me lembro que da primeira vez que fui na piscina, era tanto constrangimento, tanta regra. Mas não era só a regra, é uma coisa de constrangimento mesmo, é quase que como se a gente não pudesse ocupar aquele espaço”.
Fato é que depois do Planta a minha concepção (imagino que assim como a do meu amigo carioca e a das dezenas de pessoas que passaram lá durante 4 dias de apresentação) do espaço público foi bem alterada. Vi que narrativas podem e devem ser contadas em mais lugares. Quanto ao João: este tem mais três projetos pela frente. Estou ansioso para o que tem por vir!
Fotos por Fernanda Miranda
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