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Um caboclo nos vernissages

"É que o meu avô é italiano..."

por Adolfo Caboclo, 21 de julho de 2020
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"A redenção dos Cam" (Modesto Brocos, 1895) - obra em que uma avó negra agradece o nascimento de um filho de pele clara.

“A redenção dos Cam” (Modesto Brocos, 1895) – obra em que uma avó negra agradece o nascimento de um neto de pele clara.

 

Algum tempo atrás descobri que, fora do território brasileiro, não sou branco. Ao sair com uma amiga alemã de um café londrino, em King’s Cross, uma dezena de caras me cercou e vomitou xenofobias. Alguns dias depois, meu amigo tcheco me disse: “you are brown”.

Assim como tantos brasileiros, nasci imerso pela falta de consciência de classe e pela negação histórica e identitária. Precisei de muito estudo e alguma maturidade para entender questões que envolvem o racismo estrutural e aprender que, por exemplo, existiu um programa oficial do governo brasileiro, da primeira metade do século passado, que buscava o branqueamento nacional. Foram inúmeros os capítulos da nossa história que forjaram o equivocado pensamento do “paulista que pensa que é europeu por ser descendente de italianos”, tão bem ilustrado na famosa cena de Bacurau (2019).

Assis Chateaubriand, que jamais foi acolhido pela elite paulistana, se anunciava como “marabá” – descendente da mistura entre o indígena e o francês. Simbolicamente, Chateaubriand queria dizer que fazia um banquete antropofágico dos donos do poder.

Sempre escutei meu pai lamentar o fato de ele não possuir o mesmo sobrenome do meu avô, “Caboclo”. Pouco antes do meu pai falecer, ele decidiu assumir por conta própria esse sobrenome. Após sua morte, fiz o mesmo e, por uma série de motivos simbólicos e práticos, passei a assinar como “Adolfo Caboclo”: artista meio imberbe, com pelos incompletos graças ao sangue brasiliano.

“Caboclo remete termos como “sertanejo”, “camponês”, “roceiro”, “matuto”, “sem teto na cidade” e, é claro, “caipira”, que seria um aldeão. Se formos procurar no tupi-guarani, acharemos a palavra “capiâbiguara”.

“Cai” significa “gesto de macaco ocultando o rosto”. “Capipiara”, quer dizer “o que é do mato”. “Capiã”, “de dentro do mato”. “Capiau”, “caapiária” e “caapi” são todos nomes que remetem à ideia de lavrador. Câmara Cascudo, em seu Dicionário do folclore brasileiro, relaciona o caipira com “caipora”, que significa em tupi “habitador do mato” e o “curupira”, ser fantástico, espécie de demônio que vagueia pelos matagais.

O caboclo, a mistura do branco com o indígena, ganhou força no imaginário paulista com a obra do pintor Almeida Júnior. Para pintar o “Caipira picando fumo” (1893), o artista usou como modelo um homem, conhecido como “quatro paus”, que ocupava um pedacinho de terra em sua fazenda. O pintor ituano foi a maior estrela artística brasileira do século XIX. Ele recebeu todo o reconhecimento possível em vida e chegou até a estudar na École National Superieuredes BeauxArts, em Paris – com tudo pago pelo imperador D. Pedro II, maravilhado com seu talento.

"Caipira picando fumo" (Almeida Júnior, óleo sobre tela, 141 x 202cm, 1893)

“Caipira picando fumo” (Almeida Júnior, óleo sobre tela, 141 x 202cm, 1893)

 

Na França, Almeida Júnior teve como professor Alexandre Cabanel. O pintor ituano conviveu com tudo que existia de mais valorizado aos padrões eurocêntricos, porém, ao lermos o crítico mais renomado da época, Gonzaga-Duque, ele escreve: “ele (Almeida Júnior) é a sua obra. Forte, obscuro por índole, devotado ao estudo como é devotado ao canto de terra […] baixote e quase imberbe. Simplório no falar e simplório no trajar […] na academia, na gíria dos estudantes da época, o chamavam de ‘um bicho’, os colegas o caçoavam com seu tipo provinciano. Quando falava, seus colegas o satirizavam […] como a dos caipiras […] deste modesto provinciano, inalteravelmente roceiro, surgiu um artista de valor”. O crítico sugere que Almeida Júnior, mesmo tendo ido estudar no Rio de Janeiro e em Paris, é o próprio caipira. Afinal, o que um artista produz, se não um pedaço de si próprio?

Algum tempo depois, Monteiro Lobato também trabalhou com o arquétipo do caipira, o que naturalmente ecoou com a obra de Almeida Júnior. O personagem de Lobato, o Jeca Tatu, retrata um caipira de forma pejorativa. Tenta caricaturar a arquétipo que o pintor ituano engrandece. Mas assim como na leitura de Gonzaga-Duque sobre o pintor ituano, é possível constatar que Monteiro Lobato, embora tentasse diminuir o arquétipo do caboclo, ao circular entre os modernistas na capital talvez pudesse parecer provinciano.

“Tupi or not tupi”, dizia Oswald de Andrade em seu famoso manifesto. Porém, o modernismo é uma lógica artística eurocêntrica, como já apontava Mário Pedrosa nos anos 1970. Não somos europeus. Em um delírio colonizado, brotamos com o café, iluminados pelo sol dos trópicos, mas que nunca foi para Bacurau.

"Cozinha caipira" (Almeida Júnior, 1895) e "Xirixana xaxanopi thëri desmancha bananas cozidas em panela de alumínio" (Claudia Andujar, 1974)

“Cozinha caipira” (Almeida Júnior, 1895) e “Xirixana xaxanopi thëri desmancha bananas cozidas em panela de alumínio” (Claudia Andujar, 1974)

 

Sem terra (Justificando, 2017) e Nhá Chica (Almeida Júnior, 1895)

Sem terra (Justificando, 2017) e Nhá Chica (Almeida Júnior, 1895)

Adolfo Caboclo

Artista e pugilista. @adolfinhocaboclo

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