Virada Cultural e Controlada
A Virada sem interação com a cidade pareceu um Lollapalooza
Em um respiro noturno, resolvi dar uma pausa na produção da minha monografia. Eram tempos em que eu ainda era universitário e vivia um inferno acadêmico acompanhado de um paraíso conjugal. O paraíso exploratório dos primeiros dias de namoro. Tempo bom.
Fernanda, minha namorada, me ligou. Atendi. Na época, atender o celular era uma constante entre poucos minutos. O WhatsApp ainda não existia. Com sua voz risonha, que desde aqueles tempos remedia minhas loucuras, me convidou: “vamos dar uma passada na República? Ver a Virada Cultural?”.
Naquele dia, em especial, cantava o saudoso Jair Rodrigues. E falo sem medo de errar que um dos ápices da felicidade consiste em subir as escadarias do metrô República de mãos dadas com a pessoa amada e ser envolvido pela voz do Jair cantarolando “prepare o seu coração…”.
Anos depois, comentei com um amigo o quanto foi marcante escutar Disparada, pela voz do próprio Jair Rodrigues, na praça da República. Meu amigo retrucou relembrando a vez que escutou a Gal Costa cantar Baby no palco da Júlio Prestes. Ele detalhou cada suspiro arrepiado enquanto a baiana afirmava que “moramos na melhor cidade, da América do Sul, da América do Sul” em plena madrugada onde o Martinelli e o Banespa se faziam de farol.
A verdade é que a Virada Cultural sempre foi um evento que contribuiu para o movimento de ocupação do centro da cidade de São Paulo. Assim como eu, a Fernanda e meu amigo, centenas de milhares de pessoas fortaleceram o hábito de conviver com a cidade caminhando entre os palcos do Anhangabaú, República e tantos outros durante a madrugada paulistana nos últimos anos.
Talvez por isso, em 2017, poucos meses depois do sucesso absoluto que foi o Carnaval no centro de São Paulo, senti um estranhamento enorme com a Virada sem grandes palcos na região central.
No último sábado, esparramado no sofá com a Fernanda, estudamos a programação da “nova Virada”. Decidimos nos levantar, tomar um banho, colocar dois bons vinhos na mochila e assistir a alguns shows. No grupo do WhatsApp com nossos bons amigos, um deles falou: “vamos na Chácara do Jockey, vai ser ótimo”. Nisso um outro respondeu, “Virada no Jockey? Quero ver pra depois ir embora de metrô ou caminhar até outro show”.
Quando saí do banho, umas vinte novas mensagens mostravam que o grupo fervia. Por lá já tinham falado mais ou menos o que eu pensava: que o prefeito João mudou a Virada por ser “pau mandado” do governador Geraldo, político que não possui competência para garantir segurança pra população; que os grandes palcos longe do centro fodem com aquilo que a Virada tem de mais legal – que é a experiência pela parte histórica da cidade; e que, independente do lado político ou ideal, ir ao Jockey era o que tinha de mais bacana para se fazer naquela noite.
Chegando lá, no parque que fica na zona sul da cidade, o clima estava absolutamente agradável. Pessoas felizes, sorrindo e curtindo. Tudo muito organizado. Parecia um Lollapalooza.
Os principais palcos não lotaram. Ainda sim os shows foram ótimos. Colegas da Gaymada duelavam nas quadras, próximo às coxias rolava a belíssima curadoria musical da festa Selvagem e no palco principal presenciamos a experiência mais rica que o carimbó já nos proporcionou: o show de Dona Onete com participação de Gaby Amarantos.
Aos poucos foram chegando as notícias de que, por exemplo, no palco do Anhembi, a Fafá de Belém cancelou seu show por “indisposição”, mas sabemos que no local havia falta de público. Que os poucos palcos do centro exalavam decadência. Paradoxalmente, euforia e decepção bailavam por aquela noite.
Mas foi ao acordar no dia seguinte, com a boca roxa e a ressaca oriunda dos dois vinhos que estavam na mochila, que eu vi um conhecido comentando no Facebook: “acordei com o som de bombas e helicópteros aqui no centro”.
Parece que o prefeito tinha esvaziado o centro propositalmente. Em uma operação policial, expulsaram com bombas e balas de borracha as pessoas doentes que vivem na Cracolândia. Isso poucos meses depois de tirarem aquele que, talvez, fosse a única forma de recuperação para esses cidadãos, o Programa Braços Abertos. Na mesma manhã, a Folha ainda teve a cara de pau de escrever que “chefões do PCC foram capturados”. Chefões do PCC? Domingo de manhã na Cracolândia? Não. O que aconteceu foi uma atitude higienista daquelas.
Mas claro, estamos falando de líderes que não possuem empatia nem com quem curte escutar uma Gal no Anhangabaú. Imagina então com as camadas mais vulneráveis.
A real é que esse negócio de Virada vazia com cara de Loolapalloza não tá certo, não. Ambiente controlado é para ratos de laboratório e adoradores de shoppings. Apesar de acreditar que os primeiros possuem maior empatia pelo próximo.
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