Chapada, eu queria ser como você
Para nossas águas correrem exatamente para onde devem correr.
por Caio Blanco, 30 de outubro de 2015
Sexta-feira foi meu último dia de trabalho. E eu espero, de forma sincera, que sexta-feira tenha sido o meu último dia de trabalho formal-corporativo. Eu sou um homem corporativo. Cresci uma pessoa institucional desde que me lembro por gente. Ser gente, no meu meio, quer dizer ter um bom diploma e um bom emprego para passar a vida. Basicamente. O bom emprego implica em você ganhar muito dinheiro também. Independente se esse dinheiro for do bom, é claro.
Do que me lembro, às vésperas de prestar vestibular, ainda com dezessete anos recém-completos, meu pai tinha apenas um conselho a me dar: estabilidade. Nada mais natural. Ele mesmo, empreendedor, tinha passado maus bocados e nada mais coerente do que me indicar uma saída segura para a vida. Eu iria, um ano mais tarde, parar no Largo de São Francisco, passaria por três estágios diferentes até virar um bacharel em Direito e, mais tarde, um advogado. Aqui entra a parte engraçada: eu acho que nunca quis ser advogado.
Esse, sem dúvida, deveria ser o momento da história da minha vida em que eu culparia meu pai por toda a infelicidade profissional que se seguiria pelos próximos oito anos. Não irei, entretanto. E isso por duas razões. A primeira, porque ter optado por um curso seguro foi uma das melhores decisões que tomei. E a segunda é porque, de fato, nada daquilo era realmente culpa do meu pai. Veja, eu era um compulsório colecionador de títulos. Desde competições de xadrez e oratória quando mais jovem, até diplomas linguísticos, troféus de teatro e tudo o mais que eu conseguisse colocar as minhas mãos magrelas sobre. A São Francisco foi o primeiro grande título que consegui, mas não o único. A ela, seguiram-se renomados escritórios de advocacia, bolsas de estudo no exterior, bancos internacionais de investimento, além de consagrações no trabalho e em grupos de estudo e de pesquisa. Eu era muito bom em colecionar coisas que não necessariamente faziam qualquer sentido para mim; e não havia ninguém a culpar a não ser eu mesmo.
Pretendendo aqui não fazer qualquer questão de exercitar minha falsa modéstia, eu tinha/tenho um currículo impressionante e, infelizmente, invejável. Digo “infelizmente” porque todos os itens no meu currículo não querem dizer absolutamente nada sobre mim a não ser que eu sou um jovem de origem privilegiada com neurônios o suficiente para não deixar boas oportunidades passarem. Não foi tanta surpresa quando eu, completamente infeliz com o mundo do Direito, consegui – com certa facilidade, até – chamar a atenção da maior empresa de tecnologia do mundo e descolar o estágio mais concorrido do Brasil.
Isso tudo seria ótimo, muito bem, não fosse o fato de eu ter um único e latente desejo na vida: atuar e escrever. Ok, eu citei dois desejos, eu sei. Mas o cerne da questão é que eu não queria ser advogado, tampouco queria ser um homem de negócios do mundo da tecnologia. Eu realmente queria escrever e ser aplaudido de cima de um palco. Eu disse que não iria execitar a falsa modéstia.
Eu passei dois anos, três meses e dezesseis dias na área de vendas da melhor empresa para se trabalhar do mundo e posso afirmar, sem medo de gaguejar, que se existe um inferno, ele é bem parecido com o departamento de vendas de qualquer multinacional.
Depois de meses sendo constantemente abusado pelo sistema de metas da minha empresa, eu não conseguia identificar quem eu odiava mais: se o meu emprego ou a mim mesmo. É que eu demorei um certo tempo – e aqui, “certo tempo” significa “muito tempo, muito tempo mesmo, mais tempo do que eu deveria” – para perceber e plenamente compreender o que é hoje, para mim, a maior das questões: eu nem sempre sou responsável pela minha felicidade – porque felicidade definitivamente depende de muita coisa e eu nem quero começar a destrinchar esse assunto aqui -, mas eu sou plenamente culpado pela minha infelicidade. E esse pensamento – como quase todos os pensamentos que valem a pena – decorreu de um outro muito simples, mas quase epifânico: nada importa à Chapada do Veadeiros.
Eu explico: um pouco antes de minha demissão, eu viajei para a Chapada dos Veadeiros. Era um desses lugares que pareciam ser mágicos quando descrito pelas pessoas. Algumas coisas são assim mesmo: mágicas até nas conversas (não é o caso de nenhuma área comercial, garanto a você). Eu lembro de, depois de andar mais ou menos um hora pelo cerrado árido, observar a Catarata do Rio Couros. Eu não saberia dizer quantos metros as cataratas tinham ou qual era a extensão do rio. Eu só lembro de ser magnífico e muito, muito grande.
O rio nascia de uma área chamada buriti. Existem milhares dessas áreas no cerrado, aparentemente. O buriti iniciava a sua vida como nada mais do que algumas bolhas d’água explodindo de um buraquinho no chão, provavelmente a quilômetros de distância daquela cachoeira. A água, depois de percorrer todo esse percurso e amontoar-se com outras pequenas porções d’água, também nascidas de outros buraquinhos no chão, acabava por se tornar esse grande rio de corredeiras, esculpidor de pedras e planaltos, desembocando nessa gigantesca corredeira selvagem no meio do nada. E ali eu percebi. Que não importava se eu batesse ou não as minhas metas, não importava se eu aparecesse no trabalho vestindo saia rosa e orelhas de gatinho, não importava meu emprego, meus diplomas, as línguas que eu falava. Nada, absolutamente nada importava àquela cachoeira. Suas águas continuariam caindo entre as pedras fosse o período de chuvas torrenciais, fosse a época de estiagem brava. Se eu morresse, aquela cachoeira não sentiria minha falta, não haveria luto ao seu redor pela minha ida. Se eu estivesse feliz ou completamente miserável, se eu fosse muito rico ou um hippie de mala nas costas, ela ainda assim me trataria da mesma forma: indiferente, impassível, uma força natural tão magnânima que colocou – eu mesmo e a minha vida – em seus devidos lugares.
Não me entendam mal: aqui, não pretendo dizer que não importamos. Pretendo apenas dizer que somos, em escala real e sem umbiguismos, muito pequenos. E que possuímos medos descabidos. Pois esses passos e decisões que julgamos ter poder tão decisório em nossas vidas são absolutamente nada quando conseguimos ver o cenário maior. O cenário que realmente importa. Mais do que isso, eu invejei aquelas águas. Eu queria ser como aquelas corredeiras: certas de seu poder, confiantes de seu rumo, completamente aptas para fazer o que deveriam estar fazendo. Eu queria ser como você, Chapada. Pois você sabe quem você é. Aos outros, não presta explicações, não deve favores, não faz social. Você faz o que faz pois, instintivamente, não resta a você outra opção a não ser ser exatamente quem você é. Quando eu retornei para o meio da cidade grande, não sabia de certo o que fazer com aquilo que a Chapada havia me ensinado. Mas uma coisa em específico ficou clara demais: eu não estava, em nenhuma medida, vivendo a minha vida. Eu não sabia quem eu era, o que eu queria e, muito pior, porque eu estava tão descontente. E isso porque eu passava tempo demais sendo o que esperavam que eu fosse, querendo as coisas que todos queriam e, em última instância, tentando deixar todos orgulhosos e felizes. Eu queria tanto doar ao mundo ao meu redor, fazer alguma diferença significante, que acabei privando esse mesmo mundo da melhor parte de mim: eu mesmo.
Em um mundo ideal, nascemos e crescemos orientados a perseguir nossos desejos de foro mais íntimo, a sermos quem de fato queremos ser. A sermos quem fomos destinados a ser. Mas, transformamo-nos, na maioria esmagadora dos casos, nesse amontoado de gente que reclama diariamente da própria vida. É que não somos criados socialmente para sermos, mas sim para desempenharmos. Todo o amontoado de bagagem cultural, sociológica, acadêmica que absorvermos tem como objetivo principal aniquilar quem somos para que possamos produzir. Eu gostava de escrever e atuar, mas jamais considerei seriamente ser ator e dramaturgo. Virei advogado. Eu era bom com pessoas e, ao invés de criar um projeto pessoal para falar com essas pessoas, convenci-me de que poderia ser um bom vendedor.
Esse período que fica entre nosso nascimento e nossa morte foi propositalmente roubado de nós. Nosso tempo está hoje nas mãos de interesses tão maiores do que nós e que nunca, de forma nenhuma, nos favorece – a não ser, é claro, pelas migalhas diárias de saldo bancário positivo, consumismo despretensioso, entretenimento superficial. Teríamos uma chance de saber para onde nossas águas correriam não tivessem elas sido canalizadas desde tão cedo. Mas não sabemos. Não sabemos que pedras queremos esculpir, a que amontoado de águas queremos nos juntar e, pior, não sabemos onde derramar nossas cachoeiras. Nossas? Eu tive que viajar e olhar nos olhos da Natureza para perceber que a maior fonte de todas as minhas reclamações descendia de um único motivo: eu não estava sendo fiel a quem eu era.
Perceba, eu ainda não sei quem quero ser e estou bem longe de ser o que eu realmente sou, mas em alguma parte de mim, eu comecei a ser corajoso e decidi tentar viver a vida de acordo com meus próprios termos. Coisa que já tem se provado muito difícil, mas que me presenteia como uma sensação nada menos do que libertadora. Eu decidi ser como a Chapada. Eu decidi tentar um esforço para encontrar a minha vocação e, em última análise, meu lugar no mundo. Pois fica muito mais fácil de sentar e apertar os cintos para uma viagem tão longa quanto a vida quando você está no assento correto, que encaixa perfeitamente suas costas e não te causa dores muito grandes ao longo da estrada.
E eu sei que esse texto parece ter saído de um grande e tedioso livro de auto-ajuda, mas eu realmente não me importo se hoje vão gostar do que escrevi ou se terei muitos likes na minha página do Facebook. Eu decidi que não iria escrever para vocês. Esse era o texto que eu queria escrever. Era o texto que eu precisava escrever. Para mim. E mais ninguém.
Tá bom, mentira. Chapada, esse é para você: muito obrigado.
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