Morte, black blocs, luxação e terremoto
Santiago me estraçalha em sete dias e graus na escala richter.
Um homem atravessou as margens do rio Mapocho e um carro que andava a cerca de 60 km por hora o acertou em cheio. Plaft.
Como um pacote, o homem voou uns cinco metros rumo ao céu – ou algo muito parecido com a altura do segundo andar de um prédio – e em parábola caiu bem atrás do veículo que o assassinara.
O carro em que eu estava parou abruptamente para não atropelar o corpo esparramado bem lá na frente. Fiquei assustado e como um porco em frente ao cutelo falei ao motorista, “nunca vi uma coisa dessas, tão brutal” e o motorista, por sua vez, tirou sua boina e me olhou enquanto suas mãos tremiam, respondendo: “yo, tampoco”.
Assim foi a minha primeira hora na cidade de Santiago. Exatos sete dias atrás.
Qualquer pessoa que já tenha visto uma cena dessas iria pedir pra que a velocidade máxima no perímetro urbano de sua cidade fosse reduzida para uns 30 km por hora, mas de todas as cegueiras que as pessoas insistem em cultivar, as relacionadas com a morte são as que mais persistem.
Depois disso fui parar em um hostel, em um quarto sem janelas. Refleti sobre o que ocorreu. Queria apenas aperfeiçoar meu espanhol e o meu inglês. Foi a primeira vez na vida que passei vinte e quatro horas sem conversar em português e assim atropelei, de certa forma, a minha brasilidade.
Estou em um Chile que não pode saber sobre o sangue derramado em sua ditadura. Meu segundo dia na cidade foi um 11 de setembro, dia que ocorreu o golpe de estado: quando Pinochet deu um checkmate em Allende. O sangue que foi derramado durante os anos de governo do ditador até hoje não possui uma história oficial, está tudo arquivado. O Chile é um país que não teve a sua Comissão da Verdade, e foi por isso que vi black blocs na rua.
Paus e pedras também.
Era hora de voltar aos meus aposentos. Ler um pouco de Neruda – li “Veinte Poemas de Amor y una Canción Desespredada”, depois comecei o “Confieso Que He Vivido”. Tentei acreditar que livro é escudo, ou então bunker pra se esconder de bombas, carros, paus e pedras.
No dia seguinte me mudei. Aluguei um dormitório que me traria uma nova energia. Um terraço de onde se pode ver os Andes, um terraço no qual escorreguei da escada na primeira hora que o habitei, fazendo meu ombro direito sair do lugar. Por anos sofri com meu úmero esquerdo sendo deslocado, um problema que só viria a ser resolvido de forma cirurgica. Ver o meu outro lado sofrer da mesma coisa, minha outra asa ser retalhada, foi um golpe duro.
Lembrei do amigo, o tatuador Tinico Rosa, que uma vez me disse que tatuagem é coisa de índio: que com bambu, no meio do mato, que se tatua pra se sentir mais bonito ou forte. Só esse ano eu fiz três tatuagens no braço. Sim, para me sentir mais forte, mais pronto para guerra da vida: meus braços, minhas armas. Minha arma quebrada. Foi o que pensei ao colocar o ombro no lugar.
Não quero parecer pessimista. Parecer frágil é uma política que sempre detestei e, de fato, a cada susto que Santiago me dava, também me retribuía com umas cinco coisas incríveis. Tanto gastronômicas, como urbanísticas e também através de sua imponente natureza. Foi justamente a natureza que me deu o maior susto.
Ontem estava na minha cama quando vi o lustre do quarto tremer. Abajur e garrafa de água no criado mudo foram ao chão – sim, era uma terremoto.
Tudo até então era inédito aos meus olhos brasileiros. O problema é que, como eu disse, estou vivendo em um terraço, em um prédio que naquela hora estava vazio. Não sabia o que fazer. Botei o meu casaco, saí correndo. Me perguntei se o prédio não iria cair. Desci as escadarias do edifício, tudo escuro, tudo não parava de chacoalhar e então cheguei na porta de saída e fui pra rua.
O chão parou de tremer naquele instante.
Vi umas vinte pessoas ao redor de um carro que estava com o seu som bem alto e sintonizado em uma rádio local que dizia que foi um tremor de sete graus na escala Richter em Santiago, mais de oito em outras regiões. Agora quem tremia não era o solo, mas as minhas mãos.
Fui beber um café, depois um pisco. O que todos falavam é que poderia ocorrer um tsunami a qualquer momento. Esperei as coisas acalmarem e voltei ao meu alojamento. Fui dormir, mas durante a noite tiveram mais seis ou sete tremores menores. Haja coração, amigo.
Nessa hora, uma semana atrás, estaria pedindo meu taxi em São Paulo para poder ir ao aeroporto. A sensação é que isso já faz mais de um mês.
Santiago já me fez esquecer o português, ver manifestações com paus e pedras, presenciar a morte, quebrar “minhas asas” e ainda sim encontrou uma forma de fazer o meu chão tremer. Tremer muito. Santiago me estraçalha e por sorte, sou de bronze. Ainda é apenas o começo de uma história na qual vinícolas e neve ainda carecem de ser desbravadas. Amanhã são as Fiestas Patrias, maior festa que existe na cultura chilena, um único dia onde as pessoas podem beber pelas ruas e todas as lojas, restaurantes e supermercados fecham. E Neruda tá certo: assim como ele, “Confieso Que He Vivido”.
Comentários