Os mistérios da Ilha Anchieta: do inferno ao paraíso
Recentemente, os enfeites de natal começaram a tomar conta das cidades, numa atmosfera festiva que antecipa um certo clima de “final de ano”. Foi neste cenário natalino que o feriado da Proclamação da República, no último 15 de novembro, ficou marcado como o primeiro com “cara de verão” do ano. São Pedro decidiu presentear a população com muito sol e calor.
Talvez muitos tenham considerado o calor um verdadeiro Presente de Tróia do “Pedrão”, afinal, a combinação de uma alta temperatura com o feriadão não poderia dar certo, não é mesmo? Mas o fato é que o trânsito foi absolutamente caótico.
Caos que senti na pele. Foram dezesseis horas (acreditem: DEZESSEIS!) de viagem à Ubatuba, cidade do litoral norte do estado de São Paulo, localizada a aproximadamente 230 quilômetros da capital. Mas, no final das contas, os 960 minutos de viagem valeram a pena! O feriado rendeu uma visita à paradisíaca Ilha Anchieta, a segunda maior ilha do litoral de São Paulo e um dos principais atrativos turísticos e históricos de Ubatuba.
Para chegar ao local, lancha e vento no rosto. O mar azul escuro — refletindo os raios de sol nas cristas das pequenas ondas que se formavam na superfície — me fez lembrar de quando eu era criança e imaginava que estas pequenas luzes no oceano eram flashes de anjos da guarda tirando fotos, registrando as emoções das pessoas quando estão contemplando a natureza. A cena me causou uma profunda sensação de paz, que parecia ainda mais ressaltada pela dureza do trânsito da véspera.
Não era a minha primeira visita à Ilha Anchieta, mas foi como se fosse! Da última vez que estive por lá, há uns bons anos, ela não estava tão limpa, tão sinalizada, tão linda! Além do mais, a história do local parece, às crianças mais medrosas, um horripilante filme de terror! Então, eu preferia me concentrar nas conchinhas da areia da Ilha do que entrar em contato com todos estes mistérios, de uma época em que este paraíso natural era chamado de “Ilha do Inferno”.
Até o início do século XIX, a Ilha era conhecida como “Terra de Cunhambebe” e habitada por índios. Depois disso, foi tomada por colonizadores, até que uma colônia penal foi construída por lá, em 1904. Considerado local estratégico para prisões, graças à distância da cidade e o oceano à volta, mais de 400 famílias que moravam no local foram desapropriadas nesta época. Posteriormente, na ditadura Vargas, o local se tornou um presídio político. Em 1934, como parte das homenagens ao quarto centenário do nascimento do Padre José de Anchieta, foi rebatizada como “Ilha Anchieta”.
Em 1942 esta colônia penal foi transformada no “Instituto Correcional da Ilha Anchieta”, com o objetivo de ser uma prisão “modelo” e recebeu cerca de 450 homens considerados “de alta periculosidade”. O mais interessante – e bizarro, simultaneamente – é o formato da construção retangular do pátio, de forma que todos podiam ser constantemente observados. Este formato ainda pode ser observado atualmente, nas ruínas das construções. Exatamente como Michel Foucault descreve ao analisar a sociedade disciplinar, em sua famosa obra “Vigiar e Punir”: Um prato cheio para arquitetos, sociólogos, filósofos e curiosos observarem.
Acontece que no “Instituto Correcional da Ilha Anchieta”, a parte do “correcional” não aconteceu como era proposta na teoria, com ensino, trabalho e outras “nobres propostas”, mas com muita tortura. Muita MESMO!
Ao visitar a Ilha paradisíaca, é quase impossível imaginar que este local tão lindo foi conhecido por muitos anos como “Ilha do Inferno”. Eu disse QUASE impossível. Como você pode ver nas fotos, pouco a pouco, durante a visita, cada poro do corpo vai se arrepiando. De repente, ao visitar a “solitária” (sela individual que era como um “castigo” para quem não andasse na linha), notam-se frases e desenhos gravados nas paredes e no chão que deixam transbordar emoção e sofrimento daqueles que passaram por ali.
Frase gravada no chão da solitária: “é necessário conhecer o sofrimento para avaliar a felicidade”
Frase gravada na parede da solitária: “Na data de 1944 esteve preso nesta sela por almejar sua liberdade os seguintes detentos – diversas assinaturas”(SIC)
A solitária. E aí? Você encararia?
Os absurdos que aconteciam na Ilha eram tão graves que, apesar de o cárcere, por si só, e a luta pela liberdade já me parecerem bons motivos para uma tentativa de rebelião, o que se conta é que o motivo de tudo foi vingança. Punições que iam desde privação alimentar até unhas arrancadas com alicate!
Certo dia chegou ao presídio, para cumprir uma pena, Álvaro da Conceição Carvalho Farto, um criminoso muito conhecido por ser muito inteligente, formado em engenharia e extremamente sagaz. Conhecido como “Portuga”, passou a influenciar os outros presos, tornando-se quase um líder. Portuga “ensinou” os detentos a serem mais gentis, se aproximarem mais dos policiais e até da população da ilha, transmitindo confiança e paz necessárias para o golpe.
Em 1952, Portuga chefiou uma batalha extremamente sangrenta entre presos e policiais, conhecida como uma das piores da História. Um dos soldados conseguiu fugir e avisar as autoridades, nadando até o continente, e diversos outros policiais foram até lá, contendo a rebelião. Alguns presos foram recapturados e transferidos para presídios de segurança máxima e muitos morreram. Outros tentaram fugir em barcos ou nadando, mas a falta de experiência com navegação os fazia cair no mar e o corpo enfraquecido não suportava nadar uma distância tão grande. Além disso, muitos estavam feridos e o sangue atraía tubarões. Poucos sobreviveram, mas a morte que mais me chocou foi a do líder “Portuga”. Ele havia se aproximado tanto dos chefes do presídio que salvou seu diretor e sua família. Depois, conseguiu fugir, mas sofria de problemas cardíacos e acabou morrendo de infarto em seguida!
Depois disso, a Ilha ficou abandonada até 1977, quando foi criado, com o apoio da Secretaria do Meio Ambiente, o Parque Estadual da Ilha Anchieta. O Parque ocupa toda a Ilha, preservando não só este rico patrimônio histórico-cultural representado pelas ruínas do presídio e por todas estas histórias que lá habitam, quanto a natureza encantadora.
Lá, encontramos muitas informações, imagens e objetos da época, além de painéis fotográficos, monitores históricos e de turismo. O mais bacana é que há trilhas por terra e subaquáticas também e trilhas adaptadas para receber pessoas com deficiências e pessoas idosas! A acessibilidade também é “comunicacional”: as placas indicativas têm desenhos ilustrativos, tudo é sinalizado.
Conversando com um dos guardas do local (vestido de forma bem mais descontraída dos que trabalhavam na época da tortura, como você pode perceber na foto), perguntei como era, para ele, trabalhar por lá. A resposta deixou bem clara a certeza de que, 60 anos depois, a Ilha do Inferno ficou no passado: “Ah, é muito bom, né? Eu trabalho num PARAÍSO, isso sim”.
Visitar a Ilha me deu uma esperança imensa na possibilidade de transformação de realidades duras da sociedade atual. De uma geração para outra, um lugar que era o Inferno, pode voltar a ser Paraíso…
Comentários