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Speaker’s Corner: assunto polêmico se discute no parque

por fesigiliao, 13 de novembro de 2013
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Metrô de Londres, último trem, meia noite. Uma mulher entra no vagão gritando em alto e bom tom que Jesus é o salvador, que Deus nos ama e que devemos acreditar no amor do Senhor.  Em seguida, uma outra mulher bêbada berra na mesma altura “shut up, stupid bitch!”, algo livremente traduzido como “cala a boca, cachorra!”, e aí começa a confusão. A mulher do meu lado responde “este é um país livre, deixe a mulher pregar em paz!” e a atenção de todos no vagão fica magnetizada pelo barraco.

A mulher bêbada então senta-se ao meu lado, ao mesmo tempo que a “pastora” se aproxima ainda pregando a palavra do Senhor. Até ser mais uma vez interrompida pela bêbada, que pergunta em tom desafiador “me dê uma boa razão para acreditar em Jesus!”, e a pastora responde, “porque Jesus te ama! E afasta o Diabo!”. A bêbada então levanta-se e fazendo uma pose cômica com jeito de deboche, grita “eu amo o diabo!”.

Confesso que adoraria ter ficado para acompanhar o desfecho do caso, mas a minha estação já estava chegando. No entanto, saí sem saber o que aconteceu, mas não pude deixar de me perguntar: será que não podemos dizer o que pensamos em público? Polêmico ou não, qual é o direito de nos expressarmos, assim digamos, mais socialmente?

Não por acaso, no dia seguinte fui conhecer o Speaker’s Corner. Espaço onde qualquer pessoa, pode discursar a respeito de qualquer assunto. Basta levar um banquinho, subir e pronto. O banquinho é importante porque segundo a tradição britânica, se a pessoa não estiver pisando em solo inglês, ela não estará sujeita as leis inglesas. Dizem que a polícia só costuma intervir caso receba alguma reclamação específica ou em casos de comportamento violento, ofensivo ou obsceno. E discursa-se sobre tudo, menos negativamente a respeito do governo e da família real. Aí já não pode, é cruzar o limite.

Existem Speaker’s Corner em outras cidades da Inglaterra, e inclusive em outros lugares do mundo, mas o mais famoso é o do Hyde Park, outrora frequentado por figuras icônicas como Karl Marx, Vladimir Lenin e George Orwell.

No dia em que fui não vi nenhuma personalidade, mas encontrei um lugar diferente de tudo que eu já tinha visto. Uma arena de debate, bem cheia, que em um domingo ensolarado atraía tanto turistas quanto frequentadores assíduos.

FOTO 1_P O primeiro homem que parei para escutar era um homem de roupão branco e sotaque africano, difícil de compreender. Ele fazia parte do Brotherhood of the Cross and Star, um movimento religioso nigeriano baseado no cristianismo. E ele pregava que Deus havia reencarnado na figura de Oluma Olumba Obu. Afirmação que era fortemente contestada pelo público, predominantemente muçulmano.

FOTO 3_P FOTO 2_P

O segundo discurso que vi foi o de um inglês de jeito irritado. O tema: conflito entre Israel e Palestina. Para ele a solução que poria fim ao antigo e complexo conflito era simples: como a culpa era dos palestinos, eles deveriam fazer as pazes com Israel. Simples assim. Apertem as mãos, assinem um contrato e fim da divergência.

Eu teria achado 3 minutos do seu discurso suficientes, mas quando uma menina palestina, de vinte e poucos anos, se aproximou e iniciou um caloroso debate, resolvi ficar um pouco mais. Tirando o Alcorão da mochila, o homem citou trechos como quem declara uma sentença e claro, a chapa esquentou. Mas o debate seguiu, sem violência e sem agressão, com a menina chamando ele de louco e indo embora, como havia de ser.

FOTO 5_P FOTO 4_PLogo fui atraída pelo intenso pronunciar, de algo que para mim, soava como exército árabe. Um jovem muçulmano falava com entusiasmo para uma atenta plateia composta praticamente por muçulmanos. Alguns árabes e outros aparentemente europeus.

O tom era apocalíptico e ele falava sobre as profecias de Muhammad, as que já aconteceram e as que ainda seriam provadas. Achei tudo muito interessante, até ele gritar “Come closer, I’m not going to blow you up.”, algo como “Aproximem-se, eu não vou explodir vocês.”. Interpretei a sequência de “The end is near”/”O fim está próximo”  e o bem-humorado comentário sobre explodir todo mundo, como uma boa deixa para dar uma volta e pegar um café.

FOTO 6_P FOTO 7_PEntre todos os discursos, não a toa os temas mais comuns são política e religião. Temas polêmicos que a “sabedoria” popular nos ensina a não discutir, mas que se os ignorarmos, não construímos uma visão de mundo. Ver um espaço público dedicado a promover debates, mesmo que unilaterais – não haviam judeus presentes, por exemplo -, foi uma experiência válida. Afinal, o Speaker’s Corner é compartilhamento de conhecimento.  Um pedacinho do Hyde Park aberto a livre-expressão. E os incomodados que se mudem.

Fotos por: Fernanda Sigilião e Manuela Allo

Fernanda Sigilião

Fernanda Sigilião é publicitária e atualmente mora em Londres. Fã de Beatles a Coltrane, além de música, também ama viajar. Se interessa por arte em geral, sociologia e filmes antigos, já viu ‘A Noviça Rebelde’ mais vezes do que é socialmente aceito.

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