Satyrianas e a tenda sensorial
Os arredores da Praça Franklin Roosevelt, na paulistana Consolação, ferviam, assim como os termômetros daquela noite de novembro. Estava caminhando pela praça quando senti um pequeno tapa na minha nuca e escutei a voz do meu primo falando, “que merda é essa na sua cara?”.
Ao passar a mão no rosto descobri que a minha testa estava cheia de tinta e o meu cabelo estava adornado com pedacinhos de papel.
Na verdade o que tinha acontecido comigo era consequência de uma das atrações do primeiro dia do Satyrianas, uma grande festa para celebrar a chegada da primavera, e que acabou sendo, claro, bem mais que isso. Foi um emaranhado de mais de 300 atrações espalhadas em quatro dias nas redondezas da praça onde os deuses da boêmia, caprichosamente, me fizeram estar no dia e na hora em que uma atração se apresentou como “tenda sensorial” e com ela a proposta de apresentarem um tal de “Multiversos”.
Logo de cara, na entrada da tenda, vi um casal amarrado com suas costas unidas, olhos vendados e punhos algemados. Recitavam um texto cíclico, onde alternavam as falas e quase que formavam um mantra. Em suas palavras alguns dos assuntos necessários para “jantar” uma mente na mesa de um bar: cosmos; energia; consciência divina; subjetividade; metafísica; outros universos e a nossa existência como “neurônios de um cérebro cósmico”.
Já estava sensibilizado. Por coincidência tinha passado um bom tempo meditando antes de ir para o evento, e como estava muito sensível, essas coisas me acertaram em cheio. Após ver a performance do casal, antes de entrar na tenda, a moça da entrada vendou meu olhos. Pronto, naquela hora eu estava oficialmente com apenas quatro sentidos, ou deveria dizer que meus quatro sentidos restantes foram oficialmente aguçados?
No escuro aquela tenda pequenina virou um universo, um mar de breu onde tudo parecia ser infinito. Onde os atores que lá estavam interpretaram o Divino. Seguiam com versos ao pé do ouvido sobre o cosmos, enlouquecedores: eram vozes masculinas, femininas, velhas, novas, amigas, irônicas, além de uma “música doida” – é claro que um lugar desses só podia ter uma “música doida”.
E o Multiversos não queria só brincar com tímpanos. Durante a experiência tive que interagir com inúmeros objetos, de diferentes texturas e temperaturas. Coloquei nos ouvidos algo que talvez seja um fone, deitei em uma possível cama de ar, abracei algo que deve ser uma bola gigante, mexi o que eu acho que era um caldeirão. Apenas não tenho dúvidas que fui aquecido com fogo e resfriado por um ventilador – e da-lhe versos alucinógenos nos ouvidos, sem parar.
Em algum momento no meio da experiência colocaram algo na minha cabeça, retiraram minha venda e me descobri cercado por espelhos que circulavam ao redor dos meus olhos. Foi uma psicodelia meio ufologia, meio cabaré. Incrível.
Depois de pouco mais de meia hora, me “libertaram” e como “refém em fuga de cativeiro” estava totalmente atordoado. A luz machucava meus olhos, a saída da tenda era toda branca, com uma imagem que me causou fotofobia: um homem vestido de deus zoomórfico. Vi nele um carneiro branco e dourado. A única fuga para a minha fotofobia foi olhar no escuro dos olhos desse “deus” e escutar de sua boca palavras possantes.
Voltando ao tapa que levei na nuca, e pergunta “que merda é essa na sua cara?”, eu não soube responder. Eram apenas resquícios de uma experiência sensorial. Até comecei a falar, “tá vendo aquela tenda lá na praça”, mas a falta de interesse dos ouvintes pelo assunto me fez completar com um, “esquece, vou lavar meu rosto e vamos tomar uma breja”. Algo tão subjetivo já é difícil de se transmitir por aqui, imagina na hora, atordoado. Uma pena não ter tido a oportunidade de prestigiar as outras “mais de trezentas atrações” do festival, mas o que são trezentas atrações depois de ser apresentado para um universo?
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