Nasha Gil, frescor e paixão
Era uma tarde abafada onde eu acabara de saltar do metrô diretamente para o coração da paulicéia, na Praça da República.
Meu primeiro passo na região foi em um sufocante subsolo. Em um segundo momento, após subir alguns degraus, ziguezaguiei no meio de um labirinto de gente que circulava nos arredores da praça. Por fim, alguns instantes depois, subi os andares de um dos muitos prédios da região e, da janela de um escritório, gozei da exuberância do momento, no qual fui presenteado com uma vista onde pude contemplar, lá do alto, os tons esverdeados, cinzentos e azulados mais do que especiais que existem abaixo da atmosfera da República.
Diante dessa “paleta” de cores eu esperava Nasha Gil, designer gráfica e arquiteta, que conheci profissionalmente em meus tempos de menor realização profissional e maturidade. Nesta época Nasha foi uma das minhas inspirações para mudar de ares — pois pouco tempo depois fui morar no exterior.
Recentemente, ao ir prestigiar a exposição sobre a obra e vida do diretor Stanley Kubrick no MIS, repousei um sorriso largo no rosto ao ler que Nasha foi a responsável pela identidade visual da exposição. Tal sorriso se repetiria na exposição sobre o cantor David Bowie. Durante o apogeu do meu emaranhar de informações — que colidiam entre o que meus olhos captavam e o que minha mente recordava —, escutei uma voz doce falando “oi Adolfo”. Nasha Gil estava na sala.
A elegância da designer era tão primorosa quanto a sua cordialidade ao me receber com café e torrões de açúcar. Já fazia mais de dois anos que eu não conversava com Nasha, mas o nosso papo se desenvolveu, instantaneamente, em um ritmo delicioso. Nasha Gil me contou sobre a história que galgou para se tornar a referência no design que é hoje. Falou sobre o seu início na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e como foi sua “empatia à primeira vista”, seu “encontro de almas” — como ela mesma definiu —, com o renomado arquiteto e marido, Vicente Gil.
“Estava naquela fase de efervescência, de querer descobrir tudo. A FAU não ensinava desenho técnico e eu tinha uma necessidade incrível de poder apresentar meus projetos de desenho como se fossem desenhos profissionais”, comentou a designer que, na época, fez o seu então professor Vicente Gil ficar indignado com o fato de sua aluna constatar uma carência acadêmica da instituição. No final das contas ele a convidou para ser sua estagiária e assim poder suprir tal carência técnica.
Curioso que durante todos os meus momento com Nasha, ela fez questão de ressaltar que a vida é feita de paixão. Não apenas pelo Vicente — que mesmo depois de 25 anos de casado, ainda arranca suspiros e brilho dos olhos de sua esposa —, mas também pelo seu trabalho. Cada projeto da designer é nutrido por amor, por uma crença muito profunda no que faz. Como publicitário que sou, poderia “propagandear” a Nasha com aquele memorável slogan da Apple, “think different“. Vivemos em um mundo tão errado que, de fato, são tempos em que viver “de paixão” tornou-se algo pouco comum, tornou-se diferente.
Por falar em Apple, a entrevistada me confidenciou ter jamais usado um PC, afirmou ter comprado do primeiro até o último Mac lançado. Ela explicou: “nós fomos o primeiro escritório de design a utilizar o Macintosh. Eu doei tudo para o museu do computador”.
Esse é apenas um dos muitos detalhes que fizeram o escritório que hoje a Nasha coordena, o Vicente Gil Design, chegar ao sucesso. Aliás, era absolutamente gratificante aprender cada segredo profissional que ela me transmitia. Por exemplo, fui ao delírio quando escutei a seguinte frase: “Uma coisa que é diferente de outros designers é que a gente tem um rigor enorme em criar uma grelha, uma estrutura. Estrutura é algo ‘invisível’, que para os leigos significa ‘margem’, para os mais apurados significa uma ‘guia’ e para os mais apurados ainda significa ‘loucura total’. As pessoas ‘duras’, acabam sendo escravas da estrutura. As pessoas que vão muito mais além, se movimentam com a estrutura. Vão e vem com a estrutura. Já as mais corajosas transgridem a estrutura”.
Eu estava sendo bombardeado de informações. Se o que tinha me levado até esse papo com Nasha foi o seu trabalho no MIS, não demorou muito para eu perceber que segmentar a sua obra seria uma tarefa quase impossível. São décadas de produção, com trabalhos que mereceriam um enorme estudo individual, sem contar as obras de autoria do seu marido. Nasha me mostrou, por exemplo, a tese do doutorado do Vicente, o livro A Revolução dos Tipos (1999), que é uma verdadeira obra-prima e grande referência no estudo de tipologias. Ou então a obra Luxury Painting (2007), que em parceria com uma gráfica, Nasha e Vicente “brincaram” de inúmeras formas gráficas: esse impresso é uma grande experiência para os olhos e para o tato — é formidável o número de texturas de papel que usaram e aplicaram das formas mais inusitadas no livro. Além disso, a obra causa impactos visuais muito inesperados, como, por exemplo, o fato de logo no início do livro você já ver uma página com a imagem de um cocô coberto de granulados multicoloridos. Chocante, ein?
Não é à toa que a minha entrevistada afirmou ter descoberto recentemente, em uma exposição que viu em Nova York sobre a influência punk, que é sim uma legítima punk. Não apenas pelas “madeixas prateadas arrepiantes”, mas por ser uma transgressora convicta em sua obra e estilo.
Páginas do livro A Revolução dos Tipos
As horas passavam no escritório da designer sem eu perceber. Cada trabalho apresentado era praticamente uma aula ministrada. Sua autoridade ao falar sobre identidade visual foi algo que vi em pouquíssimos profissionais. Tanto que, quando finalmente cheguei no assunto “MIS”, consegui ter um bom discernimento da amplitude técnica que a fez chegar até o museu, compreender o motivo da instituição ter preterido outros players e também entendi a responsabilidade que é exercer essa função.
Em seu primeiro momento para o Museu da Imagem e do Som, Nasha trabalhou para a exposição de Ai Weiwei, um dos grandes artistas do momento — responsável, por exemplo, pelo estádio Ninho de Pássaro, onde rolou a abertura dos jogos olímpicos de Pequim. Nesse caso, Nasha me mostrou um folder feito de papel e PVC entrelaçados, job no qual buscou mostrar uma ideia de “interligação”, assim como em toda a identidade visual dessa exposição.
Nasha também contribuiu graficamente para o espetáculo Kollwitzstrasse 52 (veja o vídeo do projeto aqui) — material que faz parte dos mais de 80 trabalhos que o seu escritório já forneceu para a ADG (responsável pela Bienal de Design Gráfico). Ela também desenvolveu a identidade visual para o Maio Fotografia do Museu da Imagem e do Som, onde fez um catálogo para a exposição e um folder para cada um dos artistas que foram expostos na ocasião (os robustos nomes de Chico Albuquerque, Willy Ronnis, Joakim Eskildsen e Carlos Eberts).
Como cinéfilo que sou, claro que fiquei absolutamente empolgado quando o nosso papo chegou no Kubrick. Exposição na qual, na época, me desprovi de criticidade para prestigiar e mergulhei como fã. Nasha me atentou para o excesso de obviedade que a exposição foi apresentada e o quão literal foi a composição dos ambientes desse evento. Assumo que me senti um pouco ingênuo de não ter pensado nisso antes.
Ela também me explicou a correria que foi para entregar todas as suas “brincadeiras” gráficas em um prazo relativamente curto, como as oriundas de imagens dos filmes do diretor, que foi feita com o nome de Kubrick em forma de uma claquete baseada no olhar dos atores e do diretor, um uso muito sensível das imagens para a elaboração do convite da exposição.
Por fim, como não poderia faltar, tivemos um papo sobre a identidade visual da exposição sobre o David Bowie — ou, na minha opinião, o Ney Matogrosso inglês—, que está rolando no MIS. Quem não viu ainda, tem que ver! Sobre o Bowie, a minha entrevistada teve a grande sacada de entender, como ela mesma diz, que “o artista é um camaleão. Na moda, na música, como ator, em suas roupas”. Partindo dessa premissa, ela buscou “tridimensionalidade” na parte visual da exposição, dando “amplitude como se fosse um universo”. Ao abrir o folder da exposição pela primeira vez, tomei um susto quando vi imagens triangulares saltando do papel, como um origami. Já quando abri o convite, vi saltar um pop-up circular com a imagem do cantor britânico. Neste trabalho, assim como em todos feitos por Nasha, nota-se que tudo foi feito com muita paixão.
De certa forma, essa paixão me contagiou. Reanimou. Assim como essa designer fez algo de coração em homenagem ao David Bowie, entendi que por aqui no NSG também sigo por paixão. Dessa vez através da palavra escrita, resultando em uma reportagem sincera. Uma homenagem para Nasha Gil.
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