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A volta ao mundo em 900 dias

por Fernanda Miranda, 25 de agosto de 2014
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Qualquer que seja a mudança, ainda que pequena, sempre bate aquele friozinho na barriga. É inevitável. O primeiro dia de um emprego novo, entrar em uma turma nova na faculdade, fazer uma viagem longa sozinho, sair da casa dos pais… fato é que não é fácil sair da “zona de conforto”. Mas mesmo aos mais acomodados, vez ou outra uma mudança há de aparecer. Não tem jeito. A vida é assim: inconstante, imprevisível, maluca, sem controle algum. Como li em um texto essa semana, a simples (e genial) frase de Joan Didion resume bem o que estou querendo dizer: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”.

É isso. O que acontece na vida sempre está fora do nosso controle. Em um instante, o nosso melhor amigo muda de cidade, o amor da sua vida termina o namoro, você é demitido do emprego, acaba seu contrato do aluguel. E aí, o que fazer? Como lidar com o novo? Como se encaixar no mundo novamente em meio a tantas incertezas, por mais que as certezas que tínhamos fossem tão ilusórias? Ouso dizer que a maioria de nós tem medo de mudanças, e por isso se apegam como podem naquilo que é certo, seguro — por mais que nada seja certo e seguro.

Outras, que acredito ser a minoria, agem de maneira contrária: são “viciadas” no incerto e na aventura das infinitas possibilidades do que pode ser o amanhã. Estas não se dão bem com rotinas e com constâncias na vida. Penso que o Roberto Ambrosio Filho, o Beto, é uma dessas pessoas. É só um chute. Mas um chute embasado. Isso porque há quase dois anos ele está viajando pela América Latina com a Princesa, sua bicicleta. Até agora, foram mais de dez países percorridos de bike, entre eles Uruguai, Argentina, Peru, Colômbia e Panamá. Com certeza, é um cara que encara, com muita frequência, e pelo jeito com muito gosto, os friozinhos na barriga, as incertezas e mudanças que surgem diariamente por aí.

Princesa leva Beto para dar volta ao mundo. Nessa foto, os dois na Cordilheira dos Andes (Foto: Beto Ambrósio) Princesa leva Beto para dar volta ao mundo. Nessa foto, os dois na Cordilheira dos Andes (Foto: Beto Ambrósio)

Conheci o Beto a alguns anos atrás em uma festa em Araraquara, sua cidade natal. Naquela época, uma amiga em comum, a Bia Pascoalato, já tinha dito que ele gostava de viajar. Está no sangue. Há pouco tempo, a encontrei para papear e ela comentou: “Lembra do Beto? Ele está viajando pelo mundo de bicicleta”.

Beto saiu de casa para essa grande viagem em dezembro de 2012. Até julho deste ano, ele contou com o patrocínio de uma marca de roupas esportivas para concretizar seu sonho. A partir desse mês, ele vai poder concluir seu objetivo — voltar ao Brasil na metade do ano que vem, depois de pedalar mais de 30 mil quilômetros por dois anos e meio, algo em torno de 900 dias, e conhecer 19 países da América Latina –, graças ao apoio que recebeu no site de financiamento coletivo Catarse. Desde que fiquei sabendo de sua viagem, tentei várias vezes, sem sucesso, conversar com Beto pelo Skype. Como ele vive numa não-rotina, onde é impossível saber onde ele estará na dia seguinte, foi difícil combinarmos um horário em que os dois estivessem online. Não dava para combinar, até porque ele não conseguia prever se no dia da entrevista marcada ele estaria em um lugar com wi-fi com cama quentinha ou sozinho em uma estrada escura pedalando — desconectado do mundo. Acabamos conversarmos por e-mail.

beto4 Entre as questões que me instigaram ao entrevistar uma pessoa que se jogou no mundo ao lado de sua bike, fiquei curiosa em saber como é viver em uma rotina onde não há rotina, onde tudo muda o tempo todo. É fácil imaginar, mas difícil alcançar a imensidão da experiência pela qual ele está passando. Isso só seria possível fazendo uma imersão parecida. Mas ainda assim, confesso que recebi suas respostas bastante emocionada, e suas palavras bastaram para eu perceber que esta está sendo uma incrível viagem — tanto dentro dele quanto no mundo externo. Essa mistura de palavras, sentimentos e trechos de diários que ele vem escrevendo desde que começou a pedalada serão transformados em livro depois que ele voltar pra casa. Nessa conversa eu também perguntei a ele sobre a solidão, o futuro e o desapego. “Desde que eu saí, minha casa é minha barraca, o meu carro é minha bicicleta e o meu quintal é o mundo”, disse em um de seus vídeos. Leia a entrevista:

Não Só o Gato: Quando conheci você em Araraquara, a Bia comentou que você gostava de viajar e falou alguns dos lugares que você já tinha visitado, como Bolívia e Peru. E agora, anos depois, ela me mostra esse seu projeto de viajar pelo mundo de bicicleta. Você sempre quis desbravar o mundo? De onde acha que saiu essa paixão por viajar? 

Beto:  A paixão por viajar é algo que esta guardado dentro dos sonhos de quase todo ser humano. Eu pelo menos nunca vi alguém que dissesse “eu não gosto de viajar”. A diferença que é que existem pessoas que têm obsessão por isso. Eu brinco dizendo que depois que fazemos uma viagem longa, dessas de mochila ou bicicleta, tomamos uma picada que nos deixa eternamente doentes. Essa doença não tem cura, mas é controlável, e a única maneira de sobreviver é viajando, pra sempre. No meu caso, acho que essa paixão surgiu porque meu pai era caminhoneiro, além de ter feito algumas viagens de bicicleta. Então ele deixou pra mim essa herança tão valiosa.

NSG: Muitas pessoas têm por objetivo viajar o mundo, nem que seja durante suas férias de trabalho. Mas a maioria opta por viajar de ônibus, avião, navio e carro. E também, a maioria faz viagens “seguras”, sabendo quantos dias vão ficar em cada cidade, em qual hotel vão se hospedar. Com você parece ser bem diferente. Por que você decidiu conhecer o mundo de bicicleta? E como é viajar desse modo que você faz, sem planos e roteiros anteriormente traçados? Dá medo? 

Beto: Até terminar os estudos, eu fiz viagens de férias também, não tinha escolha, mas sempre voltava triste pra casa, querendo ficar mais tempo, sem data pra voltar. Quando fiz essa viagem em 2008 para a Bolívia e para o Peru, muita coisa mudou, porque pude conhecer pessoas que viajavam por anos pelo mundo, e isso me fascinou. Dois anos depois, descobri que as pessoas também viajam pelo mundo de bicicleta, e aí sim fiquei louco. Sempre tive essa coisa de viajar de bicicleta na cabeça, por conta das viagens do meu pai, mas quando eu vi as fotos de um rapaz que deu a volta ao mundo pedalando, eu coloquei na minha cabeça que faria o mesmo. A partir desse dia eu nunca mais parei de sonhar com isso. E pra começar, eu provei a minha primeira viagem de bike, pelo nordeste do Brasil. Convidei o Guto, um grande amigo, e nos lançamos em uma viagem de dois mil quilômetros, por dois meses.

Depois disso eu descobri o quanto é maravilhoso pedalar pelo mundo, com pouca roupa pra levar e pouca coisa pra pensar. Percebi o quanto é simples e bonito viajar assim, por muitos motivos. Um deles, é pela maneira com a qual conhecemos pessoas. Quando estamos de bicicleta, precisamos, sim ou sim, parar pra pedir água, informação e ajuda. E muitas vezes o copo d’água se transforma em um prato de comida, em uma cama e em uma nova amizade. Viajar assim é estar aberto ao mundo, sentindo o cheiro de tudo, olhando para as pessoas com calma, conversando, brincando.

Estar aberto ao mundo é amar a todos sem diferenças, é estar consciente de que todas as culturas são diferentes, mas nenhuma é melhor nem pior que a outra, nenhuma é certa ou errada. Além desse contato com as pessoas, a bicicleta te proporciona um incrível contato com nós mesmos. Pedalar três, quatro ou até dez horas por dia nos faz pensar na vida, nos leva aos pensamentos mais profundos e muitas vezes descobrimos coisas dentro de nós que antes não imaginávamos que existiam. Aprendemos a ter calma, porque quanto maior a pressa pra chegar, mais cansativa será a viagem. Quanto maior a pressa por encontrar um lugar pra tomar banho e dormir, mesmo quando totalmente destruído, maior o estresse. Aprendemos a valorizar tudo o que temos, absolutamente tudo. Cada prato de comida, cada copo d’água, cada abraço que ganhamos, cada amigo e familiar que temos. Valorizamos porque uma viagem te tira da zona de conforto, e quando as coisas não chegam até nós de maneira fácil, aprendemos que aquilo tem muito valor. Aprendemos a agradecer por tudo isso, seja a quem nos cozinhou, a quem limpou o banheiro que estamos usando ou a cama que vamos dormir. Quando abrimos o coração pro mundo, as pessoas nos ajudam, então como eu posso usufruir de tudo isso sem agradecer? Por isso eu gosto de viajar assim.

Essa viagem não é apenas uma curtição. Eu considero tudo isso como uma grande escola da vida, onde tenho aprendido muito mais do que aprendi com todos os livros que me fizeram ler nessa vida. Eu recomendo a todas as pessoas do mundo que um dia façam uma grande viagem, mas cientes de que não será mil maravilhas, os momentos difíceis virão e são eles os mais bonitos, porque são eles que nos fazem crescer e melhorar o que somos.

E quanto ao medo: Hoje eu vejo que já senti dois tipos de medo. Um é o medo de uma situação, medo de dormir sozinho na barraca, medo de caminhar à noite sozinho.O outro é o medo da vida, ou seja, medo do futuro, medo de sair pra viajar por pensar que vou perder meu emprego e minha vida estará arruinada, o que parece ser o principal motivo da “não realização de sonhos”.

Quando eu durmo sozinho no meio do nada, eu sinto um frio na barriga, às vezes dá medo, mas é bom, não é um problema. Quando eu estou na estrada, não sinto nenhum medo, porque confio em Deus e sei que nada de mau vai acontecer. E o medo que eu tinha do futuro, esse eu já não tenho mais, porque não podemos saber o que será da nossa vida, não podemos controlar nada, tudo irá acontecer da melhor maneira possível, sempre, e essa é a grande liberdade. Recomendo.

NSG: Você é um cara animado, que faz amigos facilmente, mas ainda assim, imagino que numa viagem dessas é inevitável passar dias sozinhos. A solidão deve bater forte. E imagino que muita gente não tem coragem de fazer uma viagem como a sua justamente pelo medo de ficar sozinho. Como é pra você encarar a solidão durante suas bicicletadas por aí? Você se sente sozinho? 

Beto: Não é triste pensar que não gostamos de ficar sozinhos? Por quê? Não gostamos de nós mesmos? Muitas vezes eu me sinto sozinho, é claro, mas não tem problema. Sinto uma saudade dentro de mim que às vezes parece que o coração vai explodir, mas isso é maravilhoso, porque é sinal de que existe muito amor batendo no peito. Dói um pouco, é claro, mas não é um sofrimento. Aprendi que a dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional. Aprendi a rir sozinho, contar histórias pra mim mesmo, a me sentir bem, independente de onde estou, com quem estou, e tudo isso faz parte desse autoconhecimento que falei na questão anterior.

NSG: Você usa a mesma bicicleta desde o começo da viagem? Teve um preparo físico para isso?

Beto: Sim, estou com a mesma bicicleta, a Princesa, que segue cada dia mais firme e forte. Não me preparei muito não, simplesmente levava uma vida onde a bicicleta era o meu meio de transporte pela cidade. A preparação foi muito mais espiritual do que física.

NSG: Você pretende voltar ao Brasil no ano que vem. Já pensou no dia que chegar em Araraquara, o que vai fazer? Você tem planos? Quer ficar aqui por um tempo ou é muito cedo pra dizer? 

Beto: Sempre penso no dia em que eu chegar em Araraquara. Vai ser uma alegria muito grande estar de volta, rever minha família e meus amigos que tanto amo. Ver o que mudou e o que permanece igual, viver de novo a vida estável, pelo menos por um tempo, até enjoar e querer viajar de novo. Comer a comida de casa, ir na casa do avô, dos amigos, coisas assim que sinto tanta falta. Não tenho planos pro futuro. Como eu disse lá em cima, não dá pra controlar nada, mas eu sei que tenho vontade de pedalar muito pelo mundo ainda… mas quem sabe, né?

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Pra quem se interessar e quiser acompanhar as andanças e as fotos de Beto pelo mundo, siga sua página no Facebook, “Vestígio de Aventura“.

Todas as fotos por Beto Ambrósio

Fernanda Miranda

Recém-formada em jornalismo e editora do Não Só o Gato. Ama história em quadrinhos, os textos da jornalista Eliane Brum, as trilhas sonoras dos filmes do Woody Allen e azeitonas.

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