Assuntos

Andar de baixo

por Flavio Lobo, 27 de agosto de 2020
, ,

Por baixo do viaduto os caminhões, sem direções os automóveis, humanos motorizados os guiam, desgovernados, quilômetros de asfalto, um rio poluído em grande parte de sua extensão, assim como o ar, o nosso lar, árvores que renovam as esperanças constantemente para se manterem em pé, a paisagem degradante um postal, São Paulo, megalomaníaca metrópole.

Embaixo da ponte o teto de quem dali fez o seu palácio. Não é pouco, mas o sujeito, por direito, teria o céu, teto de seu teto, as estrelas que o guiam e a lua, que o alumia abundantemente. O céu de dia é de outro departamento. A ponte o prédio, onde fez apartamento. No térreo, na altura do chão brotam angústias, são geradas migalhas, mas as suas ideias são muitas e constantes os desejos, seu físico suporta a alegria, os exames não estão em dia, mas o coração de criança dá sobrevida e esperança ao corpo abatido sob surradas vestes. Sua melancolia raia de dia, se esvai pela tarde e desaparece completamente na calada da noite , onde a atmosfera parece lhe trazer, em mãos, o que de fato lhe é de direito: Embaixo da ponte ele está por cima nessa pirâmide social invertida, e de cabeça para baixo aguarda, no conforto de seu palácio, os frutos que as árvores que resistem em meio ao solo deteriorado lhe trazem durante a colheita fora de época.

Abaixo da terra o solo envenenado por farsas, ali são geradas decorativas frutas, de plástico flores, sintéticas gramas. O andar de baixo contaminado, mas ao andar, ninguém assim o vê, a visão distorcida de quem se ludibria com as cores mortas, opostas às dos portais das capelas, quando a luz penetra por elas. Abaixo da terra a miséria fez morada e fincou o pé, como se dissesse, daqui não saio, o solo é fértil, o tornarei estéril. E não é fácil, são anos de dedicação, não é do dia para a noite que se faz degradação. O que a terra gera não prospera sem a interferência humana e toda a sua intenção.

No andar de baixo a semente, o subsolo a abriga, o momento ela aguarda na barriga. Quem aparta a briga? Quem, com esse quadro, no quarto fará o parto? Assim a semente para si mesma mente, oculta o que escuta de sua consciência sã. Ela aguarda o amanhã, pensa que pode ser diferente, se engana, finge que está tudo bem, pensa na posterioridade e que um dia, sim, vai brotar. Alguém ali a plantou, mesmo sem cultivo, seu momento há de germinar, ela assim se tranquiliza, já ciente do estado do ventre em que está, ela tentará contornar as adversidades e surgir em meio ao devastado cenário, rompendo o asfalto. Toda gravidez na terra tem seus inúmeros riscos. Éramos ricos, passamos a encher a mesma barriga, matando a fome por ordem de sobrenome. Abaixo do chão o grão, abaixo do grão a esperança, que sustenta a raiz da última árvore à margem do rio de águas turvas e muito impuras, são nossas as impurezas, despejadas sobre a face da natureza, em prol da urbana limpeza, a beleza feliz de cidade.

Arte: Tec Fase (2019)

Tec Fase Tec Fase (2019, acrílica sobre tela)

Comentários