Três documentários e um show
Para pensarmos sobre o tempo no sexto mês de quarentena.
Esses dias pandêmicos tornaram a redação para o NSG particularmente desafiadora. Sem eventos, exposições e botequins, toda essa proposta de experimentação da vida feita pelo site, tem que ser gerada por redatores isolados. Logo, o que é apresentado por aqui vem do estudo de alguma obra de arte; da leitura de algum livro ou da paixão presente em algum verso. Nossas curiosas experiências se tornaram mais intelectuais e menos relacionais ou festivas.
Na última semana, as reflexões deste meu corpo recluso focaram-se na impossível tentativa de compreensão do tempo. Por acaso, aproveitei a quarentena para escrever um projeto de pesquisa no qual me deparei com as ideias do antropólogo Claude Lévi-Strauss, em sua obra Tristes Trópicos. Strauss acredita que as cidades americanas foram submetidas “da barbárie à decadência sem conhecer a civilização […] elas vão do viço à decrepitude sem parar na idade avançada”, ou seja: no Velho Mundo existem construções milenares, que contam a narrativa de suas cidades e preservam suas memórias. Por aqui, estamos sempre demolindo as coisas, temos caçambas cheias de entulhos do que foi derrubado ou do que será construído e nesses entulhos se esfarelam nossas próprias memórias, histórias e narrativas. Afinal, o que é um lugar? Não seria um acúmulo de tempos?
Nessa energia de contemplação do “tempo” e de significação da “quarentena”, venho aqui apresentar três documentários e um show que assisti na última semana. Esses me apresentaram um poderoso gatilho para o pensamento.
Quanto tempo o tempo tem (Adriana Dutra e Walter Carvalho, 2015, disponível na Netflix) é um documentário que começa com uma narradora em dúvidas, sem entender o motivo de “nunca ter tempo para fazer as coisas” e sentir que “o tempo passa cada vez mais rápido”. Então, ela resolve passar um ano entrevistando estudiosos, cientistas e religiosos, tentando entender suas respectivas visões sobre o tempo.
No Brasil, ela fala com pessoas interessantíssimas, como a Monja Coen e o físico Marcelo Gleiser. Outros exemplos de entrevistados são o sociólogo italiano Domenico De Masi e o filósofo francês André Comte-Sponville. Entre as ideias debatidas no filme, existem momentos em que a obra apresenta o “tempo” em si – e aí, como Einstein diria, é relativo – e também momentos em que a narrativa chega na desigualdade social, em lógicas do tipo: no futuro as diferenças sociais vão refletir ainda mais na expectativa de vida. O rico vai viver 200 anos e o pobre 70 (inclusive, entrevistam uma americana esquisita, especialista em aprimoramento humano para a extensão da vida, que tenho certeza que alguns amigos afirmariam que se trata de uma reptiliana).
I am Ali (Clare Lewins, 2014, disponível no Now) é um documentário que fala sobre a vida e carreira de Muhammad Ali. Aos que me conhecem, sabem que sou uma pessoa que vê infinitas metáforas em uma luta de boxe – o momento em que dois homens, com exatamente o mesmo peso, sem importar a sua família ou status social, duelam entre si e contra seus próprios medos, portando apenas seus músculos, ritmo e inteligência.
No mundo do boxe, Muhammad Ali resplandece como a mais iluminada das figuras. Refuta seu nome de batismo, Cassius Clay, por ser uma herança escravagista; conhece Malcom X; nega ir ao Vietnã – “não tenho nada contra vietcong algum. Nenhum vietnamita jamais me chamou de nigger”.
O fato de Ali não ter ido para a guerra, não custou para ele, “apenas”, seu título mundial. Custou seus melhores anos no boxe. Pelo que acreditava, renunciou aos seus anos no auge, abrindo mão de seu “tempo”. Esse “sacrifício” foi traduzido na fotografia de capa da revista Esquire de abril de 1968, onde Ali representou São Sebastião. “The passion of Muhammad Ali”.
Narciso em Férias (Paula Lavigne, 2020, disponível no Globoplay). No filme, o músico Caetano Veloso relata o dia de 1968 em que a polícia apareceu em seu apartamento em São Paulo e o levou para meses de prisão no Rio de Janeiro.
Após assistir esse documentário, com o rosto banhado em lágrimas, fiquei com a certeza de que qualquer defensor dos tempos da ditadura, não passa de um porco. De um rato, que encontrou no WhatsApp e no Facebook a tampa de um bueiro para sair do esgoto. Em algum momento do filme Caetano fala, “não é que eles nos olhavam como se não fossemos gente, era o contrário, eles que não pareciam gente diante daquilo”.
O cantor conta que ficou preso em uma solitária e nela a relação com o tempo se fez diferente. Mais que isso, Caetano apresenta seu estado de espírito e uma ressignificação de seu próprio corpo e alma. Um novo entendimento do ritmo do mundo. Na prisão também descobriu, através da capa de uma Revista Manchete jogada no chão, que o homem tinha chegado na lua. Viu uma fotografia do nosso mundo pela primeira vez, essa foi sua referencia para compor a música Terra.
Show Agnes Nunes, Seu Jorge e Elza Soares (disponível no YouTube). Nessa semana também foi possível refletir sobre o tempo assistindo ao show de Agnes Nunes, 18 anos; Seu Jorge, 50 anos e Elza Soares, 90 anos. Agnes com um talento hipnotizante; Seu Jorge se mostra potente, uma presença de palco que exige grandeza – um de seus melhores momentos foi ao declamar Negro Drama (Racionais MCs); Elza segue sendo uma entidade sobre-humano, semideusa. Ao cantar, declara em sua melodia de mulher do fim do mundo: “ me deixem cantar, até o fim, me deixem cantar”, mostrando toda a beleza cíclica do tempo. Não existe beleza ou evolução sem a finitude.
Comentários